"Até a guerra tem regras, mas esta no Iémen é uma guerra sem regras"

Adil A. Al-Qusadi é presidente do Gulf Think Tank

Presidente do Gulf Think Tank, Adil A. Al-Qusadi assistia à sessão de encerramento do Fórum Humanitário Internacional de Riade (que se realizou a 26 e 27 de fevereiro) quando o conheci. Estava sentado ao meu lado e fez uma pergunta sobre a evolução do conflito no Iémen ao coronel Turki al-Malki, porta-voz da coligação internacional liderada pela Arábia Saudita. Aproveitando uma pausa, perguntei-lhe se estava disponível para uma entrevista a um jornal português. Combinámos para meia hora depois, numa outra sala do Intercontinental, e o analista saudita apareceu mesmo para esta entrevista ao DN. Falou muito do papel da Arábia Saudita na guerra de todos contra todos no vizinho Iémen, onde os rebeldes xiitas houthis, as forças leais ao presidente Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, a Al-Qaeda, o Daesh e até grupos secessionistas saudosos do antigo Iémen do Sul se enfrentam de alguma forma entre si e tendo várias potências a atuar nos bastidores, caso do Irão. A população enfrenta, além da guerra, a fome e um surto de cólera.

Depois de um míssil disparado pelos rebeldes houthis em meados de dezembro quase ter atingido Riade, quão grave é o que se está a passar no vizinho Iémen para a Arábia Saudita?

Tudo começou quando o governo saudita criou uma aliança dos países que apoiavam o presidente legítimo no Iémen, [Abd Rabbuh Mansur] Al-Hadi. Este é o início da história atual, mas é uma história atual profundamente enraizada na nossa relação histórica com o nosso vizinho, que sempre recebeu apoio humanitário, económico, social e político da Arábia Saudita. O Iémen também fazia parte das atividades do Conselho de Cooperação do Golfo e chegou a ser candidato a membro. O que está a acontecer veio na sequência da revolução no Iémen...

Está portanto a recuar ao momento pós-Primavera Árabe em que o presidente Ali Abdullah Saleh, no poder desde os tempos do Iémen do Norte, cede o lugar ao seu vice, Al-Hadi?

Sim. Em 2012 dá-se essa mudança, mas tudo se torna mais complicado quando [em 2014] a rebelião houthi invade Saná e se infiltra em todos os circuitos de poder. À medida que a crise se agudiza, surge [em 2015] a intervenção da aliança internacional, que não é só a Arábia Saudita mas uma série de países unidos por um objetivo muito claro: restabelecer a legitimidade em Saná, reconstruir um Iémen forte, estável e pacífico para benefício da população iemenita. O que aconteceu foi que três semanas depois do início da Tempestade Decisiva foi lançada uma segunda operação, a Restaurar a Esperança, que dava predominância às dimensões diplomática e da assistência humanitária. E contudo os houthis, um grupo armado não estatal, com diferentes dinâmicas e diferentes pontos de vista políticos, não aceitaram o negociado, impedindo a solução política fácil que era esperada. Assim, as atividades de ajuda humanitária começaram a ser ainda mais necessárias em várias regiões à medida que todo o sistema entrava em rutura, especialmente nas zonas mais isoladas. O que aconteceu no final do ano passado, desencadeado pelos houthis e por Saleh, com o fim da aliança entre eles [e a morte do próprio Saleh], foi que a crise iemenita se tornou insana. Até a guerra tem regras, mas esta no Iémen é uma guerra sem regras.

Voltando ao míssil disparado em dezembro contra Riade. Não significa isso que a intervenção que era destinada a pacificar o Iémen demora a dar resultado e os riscos para a própria Arábia Saudita aumentam e podem repetir-se os disparos de mísseis?

Desde o primeiro dia, a solução do problema tinha de passar também pela diplomacia. Mas com um grupo armado não estatal não se pode lidar da mesma forma como que se lida com governos.


Os houthis, que emanam de um ramo do islão xiita, fazem parte do contexto iemenita. Contudo, a Arábia Saudita diz que o poder que revelam e que os levou a conquistar boa parte do país tem que ver com apoios externos.


Eles são parte do Iémen, sem dúvida. Mas é indesmentível a interferência do Irão e a sua aliança com os houthis, que faz parte da estratégia iraniana de exportação da revolução [islâmica]. O Irão quer exportar os princípios da sua revolução para todas as partes do Médio Oriente que puder. E esse imperialismo tem tido criações, como o Hezbollah no Líbano. Agora querem um Hezbollah no Iémen, mas um com uma atitude mais agressiva, com ambições de ideologizar o Iémen, libertando-o de todos os princípios nacionais. É isso que faz dos houthis os houthis.


No Iémen, no Líbano, também na Síria, existem sempre lados que se enfrentam com o apoio ou do Irão ou da Arábia Saudita. É uma regra regional?

Do meu ponto de vista, o que se pode dizer é que a Arábia Saudita está sempre do lado que quer estabilizar as nações do Médio Oriente. Porém, esse objetivo tem sido desafiado por diferentes forças e o maior elemento de perturbação no Médio Oriente é o objetivo de o Irão de impedir a Arábia Saudita de ser uma potência influente na região. Consideram que se a Arábia Saudita se confirmar como uma potência influente no Médio Oriente é o próprio Irão que tem muito a perder.

Muitas vezes o conflito entre a Arábia Saudita e o Irão é descrito como um choque entre o islão sunita e o islão xiita. Concorda, ou o choque é sobretudo entre dois candidatos a grande potência regional?

Os xiitas têm sido parte da comunidade muçulmana e árabe há mais de mil anos. E não havia conflitos entre os sunitas e os xiitas. Mas quando a ideologia se torna politizada surgem os diferendos. E depois da revolução iraniana de 1979, com toda a ideologia, tudo isto começou a acontecer. O que tornou as coisas piores foi o acordo sobre o nuclear iraniano [de 2015, com os Estados Unidos, ainda sob a presidência de Barack Obama e os europeus a negociar para que parassem o programa nuclear]. Os iranianos pensaram que eram influentes, que podiam desafiar a comunidade internacional, e isso deu-lhes a ideia errada de que podiam derrotar quem quer que fosse. E começaram a aplicar planos já existentes de ganhar influência em várias capitais do Médio Oriente.

Tanto a Arábia Saudita como o Irão têm economias dependentes do petróleo. Com os preços baixos do barril, isso significa que este conflito, a prolongar-se, pode esgotar os dois países?


Pode esgotar o Irão mas não a Arábia Saudita, que iniciou um plano muito sério para se libertar da dependência do petróleo [parte do Visão 2030, do rei Salman e do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman]. Começando a criar diferentes fontes de rendimento, que contribuem já com 30% do PIB. Se se está a financiar uma guerra, e isto é muito claro para os líderes iranianos, que não é legítima nem ética, que não tem limites, então nenhuns recursos serão suficientes. Esse é o maior desafio. A Arábia Saudita nunca politizou o petróleo. Sempre tentou que o preço do petróleo fosse um fator de equilíbrio na economia global. Qualquer um pode procurar nos registos históricos da OPEP e perceber que os sauditas sempre procuraram um balanço entre o preço do petróleo e a economia global. Sobretudo quando parecia que as coisas iam correr muito mal.

Este esforço humanitário da Arábia Saudita no Iémen, com promessa da coligação de 1,5 mil milhões de dólares via ONU, é uma forma de tentar melhorar a imagem internacional. Mostrar que não pensa só no triunfo sobre os houthis mas também nas consequências da guerra nos civis?


Temos de perceber um ponto importante sobre o Iémen: tem sido sempre ou um Estado fraco ou um Estado à beira do fracasso nas últimas décadas. O Iémen, com grandes problemas sociais, foi-se tornando um terreno propício, por exemplo, para a ascensão da Al-Qaeda e de outros grupos extremistas, e isso muito por culpa do velho regime de Saleh. Mas a alternativa mostrou-se ainda pior. Depois do acordo patrocinado pelo Conselho de Cooperação do Golfo para a transição pacífica de poder [de Saleh para Al-Hadi] as coisas tornaram-se pior com as interferências do Irão nas disputas internas do Iémen e ativaram os houthis, ideologizando a política.


Mas, e insisto, este esforço humanitário significa que a Arábia Saudita percebeu que tinha de vencer duas guerras em simultâneo: uma é derrotar os houthis, outra é minimizar a crise humanitária no Iémen?

Sim, podemos dizer isso. Se quisermos ver o esforço humanitário como uma guerra, ou uma frente, sim. Tem todas as dinâmicas de uma guerra. Ao mesmo tempo, toda a gente pode ver como tem sido cautelosa a ação dos aliados no Iémen, com avaliação, monitorização e prestação de contas . Há um comité independente que, por vezes, responsabiliza a coligação pela morte de civis, mas é preciso não esquecer que todas as guerras têm estes dois lados, o beligerante e o humanitário.

Uma última pergunta: como descreve a aliança entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita? Com Donald Trump, cuja primeira viagem presidencial foi a Riade, e o rei Salman, é ainda mais forte do que no passado, sobretudo por ambos verem o Irão como ameaça?

Tem sido sempre uma aliança estratégica, institucional, que não depende de pessoas. É uma aliança muito forte a todos os níveis. Milhares e milhares de sauditas estudaram e estudam nos Estados Unidos. A Saudi Aramco [petrolífera estatal] foi iniciada por companhias americanas. Tem sido uma aliança de ganho-ganho com vantagens para ambos os parceiros. É uma aliança que não é tática mas sim estratégica. O que está acontecer nos últimos tempos, como a visita do presidente Trump, é um sinal claro de que os dois países vão trabalhar juntos para manter a relação bilateral no seu ótimo, sem prejudicar as prioridades nacionais quer da América quer da Arábia Saudita.


O DN viajou a convite do King Salman Relief Center
copiado https://www.dn.pt/mundo

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