Franquia do crime: vítimas das milícias sofrem com extorsões e violência no RJ
Relatos de vítimas e investigações da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro mostram que moradores de áreas sob influência de milicianos são forçados a pagar taxas, perdem casas e negócios, e vivem sob constante ameaça.
Por Felipe Grandin, Henrique Coelho, Marco Antônio Martins e Nicolás Satriano, G1 Rio
A atuação das milícias no Rio de Janeiro para demonstrar poder, por vezes, inclui a cobrança indiscriminada de diversas taxas, invasões em favelas anteriormente ocupadas pelo tráfico e até a prática rotineira de homicídios.
Na terceira reportagem da série Franquia do Crime, do G1, pessoas que vivem nas áreas de influência das milícias contam histórias que ilustram como funciona a coação praticada por esses grupos. É uma população ameaçada constantemente pelos criminosos – seja diretamente ou por ações que envolvam as disputas territoriais.
Em 2017, a Divisão de Homicídios da Baixada Fluminense prendeu vários membros de uma milícia que atuava em São João de Meriti, Duque de Caxias e Belford Roxo. O grupo demonstrava seu poder também por meio de assassinatos.
A investigação começou depois que um jovem de 17 anos sobreviveu a uma tentativa de triplo homicídio, em março de 2016, em Belford Roxo – crime realizado por uma das milícias que se instalaram na região. O grupo aterrorizava os moradores e cometia roubos de carga com o uso de um "jammer", um aparelho que desativa o sinal de GPS dos caminhões de carga roubados.
Na ocasião, três jovens foram levados para a casa de um miliciano, identificado apenas como "Tenente", e depois deslocados para um lugar distante onde foram metralhados durante a noite. Atingido com um tiro no pescoço, o jovem sobrevivente foi resgatado por caminhoneiros e prestou depoimento na Divisão de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF)
Segundo a DHBF, para que o grupo atuasse, houve omissão de agentes do Estado. Dois policiais militares do 21º Batalhão da Polícia Militar (São João de Meriti) já respondem a processo na Justiça Militar por corrupção passiva, suspeitos de receberem propinas entre R$ 700 e R$ 5,2 mil.
Um dos pagamentos, segundo escutas telefônicas autorizadas pela Justiça, foi feito na porta do batalhão. Perguntada sobre a atual situação do policiais, a PM não respondeu até a última atualização desta reportagem. Entre os 23 denunciados pelo Ministério Público por participarem do grupo, havia outros três policiais militares.
Bairro sob domínio em Mesquita
Na quarta-feira (14), uma operação conjunta da Draco, do Grupo de Atuação Especializada e Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público e da DHBF prendeu nove pessoas no bairro Jacutinga, em Mesquita. Sete delas, incluindo quatro PMs da ativa, foram presas por suspeita de pertencer a uma milícia na região.
A investigação começou com a recusa de um policial em pagar uma taxa de segurança semanal de R$ 1 mil. Dias depois, ele sofreu uma tentativa de homicídio e viu outro colega ser assassinado pelo grupo.
"A partir daí, a Divisão de Homicídios da Baixada começou a investigar o homicídio, e a Draco investigou a atuação da milícia naquela região", disse o delegado assistente da DHBF, Luís Otávio Franco. O grupo cobrava taxas de segurança e a compra de cestas básicas era feita exclusivamente com eles.
'Quem mandou roubar no bairro?'
Já em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, a história do jovem X (o nome será omitido por questão de segurança), mostra bem uma parte do modus operandi do grupo. X foi abordado quando estava no portão de casa com parentes e morto por milicianos sob acusação de praticar roubos na região.
A DHBF tem o caso em compasso de espera porque a principal testemunha não identificou os apontados como autores após investigação. "Sem essa identificação, é muito difícil", diz o delegado Evaristo Pontes.
A mãe de X disse ao G1 que o filho estava numa praça, próximo à casa dos avós, quando foi abordado por uma pessoa já conhecida dele. Era, segundo a família, um dos chefes da milícia na região. Segundo informações da investigação, foi citado como amigo de um notório ladrão do bairro onde morava. A mãe conta que o homem falou com X e o acusou de praticar roubos também.
"Ele foi chamado para poder ficar à vontade no bairro para roubar, porque antes do Exército ele trabalhava com entrega, então ele conhecia toda a rotina do bairro. Tinha uma pessoa desse grupo que queria R$ 500 por semana, porque "já sabia" que ele estava assaltando", afirmou ela.
X não aceitou a proposta, e ouviu uma ameaça em resposta.
"Se em uma semana você não me der esse dinheiro, você vai morrer"
A mãe conta que o jovem minimizou o ocorrido e não denunciou a ameaça à polícia. Na semana seguinte, já em julho, ele estava de folga no quartel do Exército e pediu dinheiro para cortar o cabelo, para se apresentar de acordo com os parâmetros militares na segunda-feira. Depois de passar a tarde com amigos, X estava conversando na porta de casa com um parente. De repente, um carro preto se aproximou.
"A pessoa já veio, perguntou se ele era o X e já foi atirando. Ele se assustou, correu, o cara errou os tiros, não sei precisar quantos, porque tinha tiros no muro do vizinho, e acertou um nas costas, ele ainda correu um pouco mais, aí ele caiu no chão. Nessa altura, meu marido já estava no quarto de cima, e ele e meu filho só ouviram disparo quando ele disparou à queima-roupa no peito dele", relata a mãe. Segundo testemunhas, o autor do crime saiu do local gritando:
"Viu, quem mandou roubar no bairro?"
"Para justificar a morte eles agem sujando o nome da vítima, porque aí a vítima se torna culpada. Justificando a morte, as pessoas falavam: 'Ah, era um menino tão bom, mas está vendo? Estava assaltando. Por isso que morreu desse jeito'", afirma a mãe.
Imóveis invadidos em Ramos
Ramos é um bairro na região da Leopoldina, na Zona Norte do Rio. É vizinho ao Complexo de favelas da Maré, dominado pelo tráfico de drogas. E, assim como a comunidade vizinha, tem problemas com grupos criminosos. Segundo moradores, parte do bairro é dominada pelo miliciano conhecido como cabo Afonso.
"São R$ 100 por semana, ou mais, para não ser assaltado, mas não há garantias. Também tem lojas abandonadas que são invadidas [pelos milicianos], e o aluguel é dele. Tem ainda esquema com comércio varejista para lavagem de dinheiro", denuncia um morador.
A abrangência dos crimes da milícia em Ramos, segundo o relato, está intimamente ligada a policiais militares e receberia dinheiro de traficantes, comerciantes e até de bicheiros: "Eles extorquem o legal e o ilegal: jogo do bicho, lotérica, lojas..."
Comércios vazios também passam para as mãos dos milicianos. De acordo com a pessoa que conversou com o G1, as lojas desocupadas viram "ativos" da quadrilha porque são invadidas e, depois, alugadas.
"Como a região tem muitos [imóveis vazios], passa despercebido esta forma de ganhar dinheiro ilegalmente. Até mesmo o Cine Rosário está sob este risco", explica.
Guerra na Praça Seca
As três semanas seguintes ao carnaval deste ano foram de intenso tiroteio na região da Praça Seca, na Zona Oeste do Rio. No início daquele mês de fevereiro, outra forte troca de tiros exporia aos cariocas que aquele local passou a ser ponto de disputa entre milicianos e traficantes.
"Essa semana agora [relato obtido no início de março] que está calmo. Só alguns tiros esporádicos. (...) Há três dias mataram dois motoboys no final da rua. Eles proibiram motoboys a partir de um determinado ponto. A milícia e o tráfico proibiram", afirma o morador. A disputa entre traficantes e milicianos ocorreu durante semanas (veja vídeo).
A atividade de milicianos na Praça Seca remonta aos primórdios da expansão dos grupos criminosos pela cidade. Hélio Albino Filho, de 45 anos, conhecido como Lica, é, de acordo com a polícia, o responsável por chefiar os confrontos naquele bairro.
Enquanto milicianos e traficantes atiram uns contra os outros, deixando moradores reclusos, os negócios do primeiro grupo criminoso prosperam. Parte dos moradores do local que ainda não entrou na folha de cobrança da quadrilha diz que eles são "discretos" e "educados" na abordagem de extorsão.
"Eles vêm buscar dinheiro numa boa. Não se escondem e também não pedem a morador [de determinada parte da Praça Seca]. (...) E eles sabem de todo mundo. Andam bem arrumados, são educados. Chegam discretos. Um senhor que faz frete disse que toda semana tem que dar R$ 100 a eles", diz.
copiado https://g1.globo.com/
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