Seduções de Capitu


País - Sociedade Aberta

 

Jornal do BrasilWander Lourenço de Oliveira*
Para percepção do contexto social oitocentista, poder-se-ia dizer que a esposa de Bentinho seria inocente perante a traição sobre a qual é acusada por uma figura dramática perante a ideia fixa pela construção de uma verdade forjada pela excessiva desconfiança oriunda de uma espécie de ressentimento conjugal? Em Uma literatura nos trópicos, mais especificamente no ensaio intitulado Retórica da verossimilhança, Silviano Santiago adverte que se deve atentar para o fato de que qualquer das duas atitudes adotadas – condenação ou absolvição de Capitu –, se demonstraria uma grande ingenuidade por parte do leitor, à proporção que este se identificaria, emocionalmente, com os protagonistas a ponto de tomar partido por um ou outro lado da questão.
Destarte, Santiago acrescentaria que, ao optar pela inocência ou culpabilidade, se sentiria impelido a descuidar-se da mais grave e primordial proposição da obra machadiana – o estudo do ciúme pela ótica da consciência de um narrador sexagenário, ex-seminarista e advogado de profissão, que tenta reconstruir de memória a casa de Matacavalos. Todavia, cabe indagar se as menções sobre uma análise do ciúme de um sujeito acossado pela ideia da deslealdade, quiçá não estaria recaindo por sobre os ombros de um possessivo Bentinho, absolvendo Capitu da condição de esposa adúltera.
Julgo que não seja de bom alvitre nortear a inteligência argumentativa pelo viés da obsessão ciumenta de Bento Santiago, porque, em primeiro plano, deve-se considerar que a intenção autoral se propõe a desestabilizar dois patamares de sustentação da tese instaurada pelo Realismo/Naturalismo – a verossimilhança e a onisciência narrativa. A genialidade de Machado de Assis se alicerça por uma concepção ambígua a se movimentar por mecanismos contraditórios, que se insinuam por convicções que abarcam ora a difamação familiar; ora o veredicto por crime de adultério.
É preciso destacar que Dom Casmurro, conquanto se proponha a desestabilizar o tríptico Família / Igreja / Casamento, ao inserir a interrogação, se arremessa por sobre parâmetros que desaguam em Madame Bovary de Flaubert, O vermelho e o negro de Stendhal, Ana Karenina de Tolstói ou O primo Basílio de Eça de Queirós. Isto porque, se por um lado o discurso contra a probidade nupcial impetrado pelo realismo europeu, cujos tentáculos se arvoram em denegrir a união validada pelo matrimônio, em Dom Casmurro nota-se que a comprovação da infidelidade feminina se evapora pela magistral inserção da dúvida de adultério.
O mais intrigante nesta discussão vem a ser que, ao invés de se alcançar uma confirmação ou negativa sobre o caso Capitu, o leitor descortinará o enigma para desvendá-lo ao compreender que, por detrás do trunfo da ambiguidade, se institui uma espécie de Dom Quixote de mantilha e espartilho, a instigar os parâmetros da estética ficcional no âmbito da criação literária. Ao contrário de Gustave Flaubert, cujos intentos esboçariam Madame Bovary à luz da estratégia de narração de Cervantes, que desestabilizou a tradição medieval por intermédio de um discípulo da Távola Redonda desvairado pela leitura das novelas de cavalaria, a provinciana esposa de Charles Bovary, qual um Quixote fora de época, se esbaldava com toda liturgia da quimera para ousar romper com os grilhões estéticos do Romantismo.
Enquanto isto, a cigana dos olhos de ressaca, machadianamente, se disfarçava pelo viés da contestação de uma verdade absoluta instaurada pelas escolas realistas, de modo a autorizar a ambiguidade e a interrogação referente ao percurso da mulher infiel, desleal, traidora do século 19 – afinal Capitu traiu ou não Bentinho?
*Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras, é professor da Universidade Estácio e autor dos livros ‘Com licença, senhoritas (A prostituição no romance brasileiro do século 19)’ e ‘O enigma Diadorim’. wanderlourenco
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Tags: adultério, bentinho, capitu, dom casmurro, dúvida, machado de assis, romantismo

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