Estrella: “petróleo não é mercado, é futuro”
No quarto depoimento ao 247, o geólogo Guilherme Estrella, líder da equipe que em 2008 descobriu as reservas do pré-sal, recorda que as mesmas empresas estrangeiras que hoje pressionam o Congresso para mudar as regras para sua exploração, no final da década de 1970 refugaram a chance de participar de licitações para procurar petróleo em águas profundas, num período em que era necessário fazer investimentos em tecnologia. "Foi a capacitação adquirida naquele processo que aparelhou a Petrobras para explorar as imensas reservas do pré-sal, que hoje garantem uma oferta abundante e equilibrada de energia, que sempre foi um entrave histórico ao nosso desenvolvimento", diz ele; agora, depois da descoberta feita pela Petrobras, estrangeiros podem se beneficiar do projeto de José Serra, que abre o pré-salEstrella: “petróleo não é mercado, é futuro”
No depoimento, Estrella fala sobre os contratos de risco da década de 1970, que, em meio a disparada nos preços do petróleo, abriram a exploração para empresas estrangeiras. Também dá detalhes sobre um episódio pouco lembrado. Na mesma época, quando a Petrobras começava a desbravar as riquezas submarinas da Bacia de Campos, o governo de Ernesto Geisel, quarto presidente do regime militar, chegou a oferecer uma parcela da área para empresas estrangeiras que se encontravam no país atraídas pelos contratos de risco. Mas elas não aceitaram participar de licitações porque não pretendiam investir na descoberta de tecnologias necessárias para pesquisas petróleo a 2000 metros de profundidade. "A tecnologia e competência adquiridas neste processo permitiram, mais tarde, que o país pudesse explorar o pré-sal, que hoje assegura uma oferta abundante e equilibrada de energia, insumo que sempre foi um grande entrave a nosso desenvolvimento, " diz ele. Num comportamento que seria repetido 30 anos depois, após a confirmação das reservas do pré-sal, as empresas estrangeiras passaram a pressionar para ter acesso à área, razão principal para o projeto do senador José Serra, que elimina o papel da Petrobras como sua operadora exclusiva.
247 – O senhor fez carreira como geólogo na Petrobras, onde ingressou em 1964 e permaneceu até a aposentadoria. Retornou em 2003, como diretor, já no governo Lula. Como civil, o senhor acompanhou de perto o período do regime militar. Como analisa essa época?
GUILHERME ESTRELLA – É praticamente impossível fazer uma análise isenta de um período em que se praticou o terrorismo de Estado. Mas é possível tentar interpretar o papel e as responsabilidades, que as Forças Armadas assumiram no país. Aceito a visão de que possuem a soberania nacional como valor maior e que, quando este conceito está sendo subvertido, não incomoda sua consciência a iniciativa de extinguir, pela violência, o regime democrático, a Constituição, os direitos da cidadania e os direitos humanos. Foi o que aconteceu em 1964 e não há argumento que torne isso aceitável. Mas, dentro de uma exercício reflexivo distanciado, sobre a história do país, pode-se apontar, isoladamente, alguns fatos positivos. Foi assim ao aceitar a noção de que nossa deficiência no insumo "energia" sempre foi um entrave para nosso desenvolvimento, que representava uma ameaça à segurança nacional e que era preciso enfrentar isso. A ditadura militar sempre teve na Petrobras a ferramenta de governo nessa matéria.
247 – Por que isso é tão importante?
GUILHERME ESTRELLA – Não acho difícil entender que o maior entrave no nosso processo industrial foi a deficiência energética. Perdemos a primeira revolução industrial porque não tínhamos carvão. Atravessamos o século XIX produzindo energia em padrões quase medievais. A base era a roda dágua, a tração animal, o carvão vegetal, o braço escravo. Perdemos a segunda revolução industrial porque não tínhamos petróleo. Nosso precário parque industrial estava condenado a produção de tecidos, calçados e outras mercadorias primárias, em empresas movidas a energia hidroelétrica, de pequenas usinas, com tecnologia e engenharia totalmente importadas. Nas décadas de 50, 60 e 70, construímos nossas grandes hidroelétricas e não há dúvida de que este foi o momento de decolagem -- mesmo assim supertardia -- da industrialização brasileira. Num país continental, sem ferrovias, onde tudo se baseava no transporte ferroviário, petróleo e gás seguiam sendo nosso calcanhar de aquiles. Os governos da ditadura conheciam esta realidade e fortaleceram a Petrobras, elevando bastante os investimentos em exploração de petróleo.
247 – Como foi este esforço?
ESTRELLA – Num tempo de petróleo barato, a 3 dólares o barril, não era uma opção ditada pelo mercado. Não havia motivação para ganhos imediatos, como nunca houve em nossa indústria. Era uma decisão estratégica, que olhava para o futuro, que se mostrava menos fácil de alcançar do que muitos imaginavam. Primeiro alvo de exploração, as bacias terrestres não responderam. Em 1968 fomos para a plataforma continental, que se situa em até 200 metros na lâmina dágua. Logo no segundo poço descobrimos o campo de Guaricema, no mar de Sergipe, a 80 metros de profundidade. Seguiram-se outras descobertas. Seis anos mais tarde, em 1974, a Petrobras descobriu o campo de Garoupa, na Bacia de Campos, que abriu a grande perspectiva brasileira de produção de petróleo no mar. Foi um imenso progresso, mas a auto suficiência não estava no horizonte. Em 1975 o governo quebra o monopólio estatal da Petrobras e cria os chamados contratos de risco, abrindo a exploração no território nacional para empresas estrangeiras. Apesar da polêmica que os contratos de risco provocaram, a iniciativa acabou sendo frustrada pela falta de disposição, inapetência mesmo, daquelas empresas para enfrentar riscos exploratórios. Foi neste período que ocorreu um fato que, embora não seja muito lembrado hoje, acabou decidindo a história do setor petrolífero brasileiro.
247 – O que foi?
ESTRELLA – Naquele momento, grande parte da área leste e sudeste da plataforma brasileira fora coberta pelo chamado método geofísico sismográfico de prospecção petrolífera. Para atender, também, objetivos estratégicos da Marinha, ligados a definição da zona marítima brasileira de interesse econômico exclusivo, a Petrobras atirou várias linhas sísmicas muito além do limite de 200 metros da plataforma continental. Chegou a águas de 1000 e até 2000 metros de profundidade. Estas linhas sísmicas mostraram diversas feições geológicas que, teoricamente, eram muito prospectivas para óleo e gás. Mas não havia tecnologia disponível para que se produzisse óleo e gás nessa profundidade.
247 – O que aconteceu então?
ESTRELLA – Naquela segunda metade de 1970, ocorreu um fato que não é muito lembrado. Toda aquela faixa de águas profundas e promissoras, foi dividida e quadriculada, em grandes blocos quadrados, como se fosse um tabuleiro de xadrez. Metade eram blocos brancos, metade eram blocos negros. Por iniciativa do governo -- estávamos no período Geisel -- as empresas estrangeiras que se encontravam no país por causa dos contratos de risco foram chamadas a participar de leilões competitivos, onde seriam oferecidas concessões exploratórias em toda a extensão da faixa, menos na bacia de Campos, onde já se havia descoberto óleo e gás. A proposta era: blocos brancos ficariam com a Petrobras, os pretos seriam licitados entre as empresas estrangeiras. Ou vice-versa, não me recordo direito. As empresas estrangeiras não quiseram participar.
247 – Por que?
ESTRELLA – Pela falta de tecnologia. Decidiram que até poderiam se interessar pela oferta, com a condição de que dos contratos de concessão constasse uma cláusula de "aguardo de tecnologia." Isto significava que o período no qual deveriam cumprir suas obrigações de exploração e pesquisa de somente seria contado depois que as tecnologias de produção de óleo e gás estivessem desenvolvidas, testadas e disponíveis. A Petrobras não aceitou e encerrou o processo.
247 – O que se pode aprender com este episódio, que teve um papel importante para a descoberta do pré-sal?
ESTRELLA – Este fato exibe a sensibilidade do governo de então para o caráter estratégico nacional do desenvolvimento tecnológico do setor petrolífero brasileiro. Não muito mais tarde, quando os contratos de risco já estavam extintos, a Petrobras descobre os grandes campos de águas profundas na bacia de Campos. Intramuros, com conhecimento, tecnologia e projetos inovadores, genuinamente brasileiros, a Petrobras construiu e implantou os grandes sistema de produção naquela bacia. A capacitação e competência que foram adquiridas neste processo aparelhou tecnologicamente a empresa para realizar a produção, em prazos recordes, de forma pioneira, das imensas reservas do nosso pré-sal, agora em águas abaixo dos 2000 metros de profundidade. Desde então, o Brasil conta com uma oferta abundante de energia, que nos assegura uma matriz energética estável, equilibrada, sem altos e baixos tão comuns no período anterior. Somos, afinal, um país soberano para promover a retomada do nosso processo industrial autônomo, para servir a interesses essencialmente brasileiros, com base na inteligência e competência dos brasileiros.
247 – Em outra parte da entrevista, já publicada, o senhor sublinhou o papel essencial do presidente Lula para o desenvolvimento do pré-sal. Antes dele, o Brasil teve dois presidentes eleitos. O que se pode dizer de sua atuação nessa questão?
ESTRELLA – Os governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, como todos sabemos, não elegeram tampouco praticaram um modelo de desenvolvimento nacional com essas características.
copiado http://www.brasil247.com/pt/247/
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