Qual é o caminho?
Nem CR7, nem LeBron... Como Trump e Dória, Neymar despreza mídias tradicionais em sua crise de imagem
O "desabafo" em uma campanha publicitária da Gillette no último domingo, durante o Fantástico, foi a cereja do bolo da crise de imagem de Neymar, que desde o início da Copa do Mundo ficou marcado mundialmente pela fama de "cai-cai". A peça publicitária lida por ele misturava desculpas e promessas de redenção, mas acabou por aumentar uma crise que se avizinha para o jogador mais caro do mundo.
Por trás da deterioração da imagem do jogador, está a forma como ele se comunica com o mundo. Diálogo de mão única, quase que exclusivamente por meio das redes sociais. A mídia tradicional fica em segundo plano, e aparições na imprensa só com veto a temas incômodos e censura prévia. Isso tudo em um ambiente de hiperexposição publicitária. O estafe do jogador atribui isso a um conflito de gerações: Neymar é das redes sociais, e por isso as elege como meio.
Para especialistas, é uma estratégia, que vem resultando na construção de um personagem artificial, excessivamente consumista e comercial, que não admite questionamentos e carece de maturidade. Com nomes como Cristiano Ronaldo e LeBron James como caminhos possíveis de redenção dentro da esfera esportiva, é como se Neymar se aproximasse de nomes como Donald Trump ou João Dória.
Neymar negociou conversa com a Globo, mas não queria "polêmicas"
O estafe de Neymar negociou até a semana anterior ao comercial da Gillette uma possível entrevista com a TV Globo. Em 2014, por exemplo, o jogador se abriu ao Fantástico após a Copa. Desta vez, nem com a antiga parceira, com quem ele manteve um contrato de exclusividade até meados de 2016.
A emissora carioca sinalizou que não toparia a função de auxiliar na criação de um cenário de vitimismo e desculpas. Se antes, por contrato, Neymar Pai poderia até controlar o conteúdo das gravações com a Globo, agora seria diferente. Sem acordos firmados, a TV pretendia abordar pontos delicados, como a explosão de memes ridicularizando o “cai cai” de Neymar na Rússia e o desempenho abaixo do esperado com a seleção. O estafe não topou, queria determinar assuntos e evitar pontos delicados para o atacante. A conversas travaram e não houve entrevista.
Procurados, os representantes do jogador confirmam as negociações fracassadas, mas reforçam que o fato se deu apenas por falta de tempo na agenda. O argumento para o desprezo à imprensa tradicional é o de que Neymar pertence à geração das redes sociais, sempre as utilizou como prioridade para se comunicar e continuará fazendo assim. A reportagem ouviu quatro pessoas, dos dois lados, envolvidas nas tratativas entre Globo e Neymar. Elas confirmam o veto a polêmicas e a falta de sucesso na conversa.
Neymar deixou a Rússia sem dar entrevistas, fez um post no Instagram, concedeu entrevistas protocolares em um evento beneficente e só se "abriria" no fatídico comercial. Sem “acordo”, a Globo não cogitou em nenhum momento comprar a ideia de Neymar e seu estafe. No último domingo (29), inclusive, a emissora não poupou críticas em longo material exibido no “Esporte Espetacular”, citando a imagem arranhada e os enormes desafios do camisa 10 para se reerguer na próxima temporada.
Estratégia divide estafe de Neymar, mas prevalece
Há, dentro do próprio estafe de Neymar, quem defenda uma mudança na abordagem. Isso passa por uma maior abertura com a mídia tradicional, e uma tentativa de mostrar um lado "humano" do jogador: a atenção com os fãs, as relações com amigos e familiares e o dia a dia de uma pessoa normal por trás da celebridade.
Prevalece, entretanto, a estratégia atual, com comunicação direta em redes sociais, exposição publicitária constante e porta fechada para a imprensa. Quem define os rumos da imagem de Neymar não acredita que aí esteja o problema. O próprio jogador mostra pouca preocupação com as polêmicas recentes que envolvem seu nome.
Em contato com a reportagem, uma pessoa próxima a Neymar e seu pai e funcionária da NR Sports, que cuida da imagem do atacante, considerou “positiva” a campanha da Gilette. Comercialmente, o argumento é de que as coisas vão bem, com renovações em andamento com os patrocinadores atuais e diversas propostas para novas parcerias.
Neymar segue receita de Trump e Doria: "Figura comercializada"
Declarações de Eugênio Bucci, professor titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
"Vivemos em uma era em que as celebridades imaginam que podem desprezar a instituição da imprensa. Não é uma característica do Neymar, ou mesmo da geração do Neymar. O [Donald] Trump [presidente dos EUA] faz a mesma coisa, o João Dória [ex-prefeito e candidato ao governo de São Paulo] faz a mesma coisa. É uma linha direta com as massas a partir das redes sociais.
Acho que não é aí que está o problema. Isso é uma característica do tempo, não da pessoa. O que eu acho é que ele é uma figura totalmente comercializada. É uma figura privatizada, a figura pública do Neymar. É uma questão um pouco diferente. Ele quer fazer uma readequação da imagem dele, faz isso via campanha publicitária de um produto. Ele privatiza a questão da imagem pública.
Outros jogadores, que são celebridades também, se mostram às vezes sensíveis a uma retórica demagógica que vem das imagens nacionais, uma arena mais pública, da nação. Falam de representar o Brasil, das cores. Incorporam no repertório que eles pronunciam elementos representativos da nação, do coletivo. O Neymar tem menos isso, ele é menos sensível a temas patrióticos, nacionais e públicos."
Neymar é a personificação da "Lei de Gerson"
Declarações de Eugênio Bucci, professor titular da ECA-USP
"O Neymar não faz nenhuma concessão. Ele leva ao limite a ideia de ser uma marca publicitária. Encarnou tudo aquilo que a Lei de Gerson representava [em 1976, o meia Gerson, da seleção brasileira, protagonizou uma campanha publicitária de uma marca de cigarros. O slogan, que falava em “levar vantagem em tudo”, ficou popularizado como “Lei de Gerson”]. O pobre Gerson foi acusado por fazer a propaganda de cigarro. Não era um problema ético do Gerson. Quem efetivamente encarna tudo isso, que se atribui a Lei de Gerson, é o Neymar.
Neymar é uma personalidade monetizada, é um traço característico dele. Não parece ter vínculos com o que é comum, coletivo. É o individualismo elevado ao estrelato, sem laços afetivos evidentes. É um paradoxo desse tempo. Pode ser que tenha construído nessa imagem a própria prisão, embora seja cedo para dizer.
Talvez seja a personalidade que levou mais longe a distância que separa o espírito esportivo da ambição consumista e narcisista. Os outros, em geral, guardam algo de afeto, algo de solidário, de coletivo. Ele cada vez mais parece que não tem absolutamente nada disso."
Nenhum comentário:
Postar um comentário