ABANDONAR O RACISMO E O EXTREMISMO. ATIVISTA CONTA POR QUE DEIXOU O MOVIMENTO NEONAZISTA NOS EUA
Aos 14 anos, Christian Picciolini passou de adolescente ingênuo a supremacista branco, e logo, a líder da primeira gangue de skinheads neonazistas dos Estados Unidos. Como ele se radicalizou e como, no final, saiu do movimento? Nesta palestra corajosa, Picciolini compartilha a solução surpreendente que encontrou para conferir novos rumos à sua existência. 23 DE AGOSTO DE 2018 ÀS 18:01 // INSCREVA-SE NA TV 247
Por: Christian Picciolini
Tradução: Maurício Kakuei Tanaka. Revisão: Leonardo Silva
Vídeo: TED Ideas Worth Spreading
Christian Picciolini é, hoje, um especialista em ações contra-extremismos e racismos. Dedica a vida e todas as suas forças para ajudar vítimas dessas duas aberrações comportamentais, e também aqueles que caíram nas malhas de organizações extremistas e racistas e não sabem como sair delas.
Christian Picciolini conhece muito bem esse mundo por ter vivido e militado nele durante muitos anos. Depois de abandonar o movimento supremacista branco skinhead que ele mesmo ajudou a construir nos Estados Unidos durante os anos 1980 e 1990, ele se graduou em relações internacionais na DePaul University. Logo depois, lançou o Goldmill Group, uma empresa de mídia global e de consultoria sobre contra-racismos. Em 2016, Picciolini ganhou um Prêmio Emmy por seu papel na produção de campanhas publicitárias anti-ódio e por ajudar pessoas a se desengajar de grupos extremistas violentos.
Vídeo: Palestra de Christian Picciolini no TED
Tradução integral da palestra de Christian Picciolini:
Minha saída do extremismo violento começou há 22 anos, quando denunciei o racismo e saí do movimento skinhead americano de supremacia branca que ajudei a construir.
Eu tinha apenas 22 anos na época, mas já havia passado 8 anos, desde meus 14 anos, como um dos primeiros e mais jovens membros e, por fim, líder dentro do movimento de ódio mais violento dos EUA.
Mas não nasci dentro do ódio; na verdade, foi bem o contrário. Tive uma infância relativamente normal. Meus pais eram imigrantes italianos que vieram para os EUA em meados da década de 1960 e se estabeleceram na parte sul de Chicago, onde depois se conheceram e abriram uma pequena loja de artigos de beleza. Logo após eu nascer, as coisas ficaram um pouco mais difíceis. Eles lutavam para sobreviver cuidando de uma família jovem e um novo negócio, trabalhando, muitas vezes, 7 dias por semana, 14 horas por dia, assumindo dois, três empregos para garantir o básico para sobreviver. Era praticamente impossível a meus pais terem tempo para passar comigo. Mesmo sabendo que me amavam muito, eu crescia me sentindo abandonado. Sentia-me solitário e comecei a me afastar e a ficar ressentido com meus pais e a ter muita raiva. Conforme eu crescia, passando pela adolescência, comecei a tentar conseguir a atenção de meus pais.
Um dia, aos 14 anos, eu estava fumando em um beco, e um homem, com o dobro de minha idade, cabeça raspada e botas pretas, surgiu na minha frente e arrancou o cigarro da minha boca. Ele colocou a mão no meu ombro, olhou-me nos olhos e disse: “Isso é o que os comunistas e os judeus querem que você faça para mantê-lo submisso”. Eu tinha 14 anos. Trocava cartões de beisebol e assistia a séries de TV. Nem sabia o que era um judeu.
É verdade. O único comunista que eu conhecia era o cara russo malvado de meu filme Rocky favorito.
Já que estou aqui, abrindo meu coração a vocês, posso revelar que não sabia nem mesmo o significado da palavra “submisso”.
Mas era como se o homem daquele beco tivesse me atirado um salva-vidas. Por 14 anos, eu me senti marginalizado e discriminado. Tinha baixa autoestima. Sinceramente, não sabia quem eu era e qual era meu lugar, ou meu propósito na vida. Eu estava perdido. Da noite para o dia, pelo fato de aquele homem ter me resgatado e eu ter agarrado aquele salva-vidas com todas as minhas forças, deixei as séries de TV para me tornar um completo nazista. Da noite para o dia.
Comecei a ouvir a retórica e a acreditar nela. Comecei a ver bem de perto como os líderes daquela organização, cujo alvo eram jovens vulneráveis que se sentiam marginalizados, os atraíam com promessas que não eram cumpridas. Então, comecei eu mesmo a recrutar, por meio da produção de música sobre a supremacia branca. Logo me tornei o líder dessa organização abominável, liderada pelo homem que encontrei naquele beco e que me recrutou naquele dia: o primeiro skinhead neonazista americano que me radicalizou. Nos oito anos seguintes, acreditei nas mentiras que me contaram. Embora não visse evidência alguma do que me contaram, eu não hesitava em culpar cada judeu do mundo pelo que considerava ser um genocídio de brancos europeus, promovido por eles por meio de uma pauta multiculturalista. Eu culpava as pessoas de cor pelo crime, pela violência e pelas drogas na cidade, ignorando completamente o fato de que eu cometia atos de violência diariamente, e que, em muitos casos, eram os supremacistas brancos que distribuíam as drogas no centro das cidades. Eu culpava os imigrantes por tirar os empregos dos brancos americanos, ignorando completamente o fato de que meus pais eram trabalhadores imigrantes que lutavam para sobreviver, apesar de não conseguirem ajuda de ninguém.
Nos oito anos seguintes, vi amigos morrerem, outros serem presos e inúmeras vítimas e suas famílias serem torturadas. Ouvi histórias terríveis de mulheres do movimento, brutalmente estupradas pelos mesmos homens em quem foram induzidas a confiar. Eu mesmo cometi atos de violência contra pessoas somente pela cor da pele, pela orientação sexual, ou o deus em quem acreditavam. Eu armazenava armas para o que eu considerava uma guerra racial iminente. Frequentei seis escolas; fui expulso de quatro delas, de uma das quais, duas vezes. Há 25 anos, compus e toquei música racista, que chegou à internet décadas depois e de certa forma inspirou um jovem nacionalista branco a entrar num templo sagrado de Charleston, na Carolina do Sul, e massacrar nove pessoas inocentes.
Mas, então, minha vida mudou. Aos 19 anos, conheci uma garota que não fazia parte do movimento e não era nada racista. Eu me apaixonei por ela. Aos 19, nós nos casamos e tivemos nosso primeiro filho. Quando segurei meu filho nos braços naquele dia, na maternidade, não apenas me reconectei com parte da inocência que eu havia perdido aos 14 anos, mas aquilo também começou a me fazer refletir sobre as questões importantes que me levaram ao movimento, identidade, comunidade e propósito, coisas que mexiam comigo quando ainda jovem. Eu passei a questionar novamente quem eu era. Eu era um semeador de discórdia neonazista, ou um pai e marido carinhoso? Minha comunidade era aquela que eu havia construído ao meu redor para alimentar meu próprio ego, pelo fato de eu sentir ódio por mim mesmo e querer projetar isso nos outros, ou era aquela que eu havia fisicamente gerado? Meu propósito era destruir o planeta ou torná-lo um lugar melhor para minha família? De repente, era como se uma tonelada de tijolos tivesse me atingido, e fiquei bem confuso em relação a quem eu tinha sido naqueles últimos oito anos. Se eu tivesse sido corajoso o bastante para sair naquele momento, para entender minha luta interior, talvez a tragédia pudesse ter sido evitada.
Em vez disso, assumi um compromisso. Deixei as ruas pelo bem da minha família porque eu estava preocupado com a possibilidade de ser preso ou acabar morto, e eles precisarem se virar sozinhos. Então, deixei de ser líder e abri uma loja de discos para vender, é claro, música da supremacia branca que eu importava da Europa. Mas eu sabia que, se fosse apenas uma loja racista vendendo música racista, a comunidade não me deixaria ficar lá. Decidi, então, abastecer as prateleiras com outro tipo de música, como punk rock, “heavy metal” e hip-hop. Embora a música de supremacia branca que eu vendia correspondesse a 75% de minha renda bruta, porque as pessoas vinham de todo o país para comprá-la da única loja que a vendia, eu também tinha clientes que entravam para comprar outro tipo de música e que depois começaram a conversar comigo.
Um dia, entrou um adolescente negro visivelmente triste. Decidi lhe perguntar o que havia de errado. Ele me disse que sua mãe havia sido diagnosticada com câncer de mama. De repente, esse adolescente negro, com quem nunca tive uma conversa ou interação significativa, fui capaz de me conectar com ele, porque minha mãe também havia sido diagnosticada com câncer de mama, e pude sentir a dor dele. Em outra ocasião, um casal gay entrou na loja com o filho, e ficou óbvio para mim que eles amavam o filho com o mesmo amor profundo com que eu amava o meu filho. De repente, eu não conseguia mais defender ou justificar o preconceito em minha mente.
Decidi retirar do acervo da loja a música de supremacia branca quando fiquei envergonhado demais de vender na frente de meus novos amigos. É claro que a loja não conseguiu se manter, e tive que fechá-la. Ao mesmo tempo, perdi quase tudo na vida. Usei isso como uma oportunidade para me afastar do movimento do qual eu havia participado por oito anos, a única identidade, comunidade e propósito que havia conhecido durante a maior parte da minha vida. Então, eu não tinha ninguém. Perdi meu sustento porque fechei a loja. Não tinha um ótimo relacionamento com meus pais, embora eles tentassem. Minha esposa e meus filhos me deixaram, porque eu não havia deixado o movimento e me livrado rápido o bastante. De repente, não sabia mais quem eu era, onde me encaixava,ou qual era meu propósito. Fiquei arrasado por dentro e, muitas vezes, acordava de manhã desejando não ter acordado.
Uns cinco anos depois disso, uma de minhas poucas amigas, preocupada com meu bem-estar, chegou para mim e disse: “Você precisa fazer alguma coisa, porque não quero que você morra”. Ela sugeriu que eu me candidatasse a um emprego onde ela trabalhava, em uma empresa chamada IBM. Sim, também achei que ela havia enlouquecido.
Lá estava eu, um ex-nazista coberto por tatuagens de ódio. Não tinha feito faculdade. Fui expulso de várias escolas inúmeras vezes. Não tinha nem mesmo um computador. Mas fui até lá e, de algum modo, milagrosamente, consegui o emprego. Fiquei animado.
Então, fiquei apavorado ao descobrir que, na verdade, haviam me colocado de volta em minha velha escola, a mesma da qual fui expulso duas vezes, para instalar os computadores. Era a escola em que eu havia cometido atos de violência contra os alunos e o corpo docente, protestado em frente à escola por direitos iguais para os brancos e feito até mesmo um ato de ocupação na cafeteria defendendo a criação de um centro acadêmico branco.
É claro que, como um carma, nas primeiras horas, vem em minha direção o sr. Johnny Holmes, o segurança negro rigoroso com quem eu tinha me envolvido em uma briga, que me expulsou da segunda vez e me retirou algemado da escola. Ele não me reconheceu, mas eu o vi e congelei, não sabia o que fazer. Eu era esse homem adulto agora, anos fora do movimento, e estava suando e tremendo. Mas decidi que tinha que fazer alguma coisa, que precisava sofrer as consequências pelo que fiz, porque, durante cinco anos, tentei superar isso. Tentei fazer novos amigos e cobrir as tatuagens com mangas compridas, e eu não admitia isso, porque tinha medo de ser julgado da mesma forma que eu havia julgado as outras pessoas. Decidi que iria ao estacionamento, atrás do sr. Holmes, o que talvez não tenha sido a decisão mais inteligente.
Quando o encontrei, ele estava entrando no carro, e coloquei a mão em seu ombro. Quando ele se virou e me reconheceu, ele recuou porque ficou com medo.Eu não sabia o que dizer. Finalmente, as palavras saíram da boca, e tudo o que pude pensar em dizer foi: “Me desculpe”. Ele me abraçou, me perdoou e me incentivou a perdoar a mim mesmo. Reconheceu que aquela não era a história de um garoto arrasado e sem rumo que acabaria em uma gangue ou na prisão. Ele sabia que era a história de todo jovem vulnerável à procura de identidade, comunidade e propósito, que encontrou um obstáculo e não pôde superá-lo, caindo em um caminho sombrio. Ele me fez prometer uma coisa: que eu contaria minha história a todos que quisessem ouvi-la. Isso foi há 18 anos, e tenho feito isso desde então.
Vocês devem estar se perguntando agora: “Como um bom garoto, filho de imigrantes trabalhadores, acaba caindo no mau caminho?” Uma palavra: fossas. Isso mesmo: fossas. Tive muitas fossas quando era garoto. Todos nós já tivemos. A fossa, quando permanece, quando não é resolvida, quando não recebe cuidados, pode nos deixar em perigo, confinados, perdidos em corredores muito escuros. As fossas podem ser coisas como trauma, maus-tratos, desemprego, negligência, problemas de saúde mental não tratados, até mesmo privilégios. Se nos depararmos com muitas fossas em nossa jornada pela vida, e não tivermos recursos nem ajuda para passar por isso ou para nos tirar disso, bem, às vezes, pessoas boas acabam fazendo coisas ruins.
Uma dessas pessoas que tinha fossas era Darrell. Darrell é do norte do estado de Nova York. Ele tinha lido minha biografia, e ficou muito triste com o final dela. Eu tinha saído do movimento e ele continuava lá. Ele me enviou um e-mail e disse: “Não gostei da maneira como ficaram as coisas”. Eu disse: “Bem, lamento”. Mas, se quiser conversar sobre isso, com certeza poderemos”.
Após algumas semanas de idas e vindas com Darrell, descobri que ele era um militar veterano de 31 anos, que havia sido ferido e estava muito bravo por não poder ir ao Afeganistão para matar muçulmanos. Um dia, ao telefone, ele me disse que tinha visto um muçulmano rezando no parque e tudo que queria fazer era chutar a cara dele. Viajei para Buffalo no dia seguinte, sentei com Darrell e lhe perguntei: “Você já conheceu um muçulmano antes?” Ele disse: “Não! Por que eu iria querer fazer isso? Eles são maus, não quero nada com eles”. Eu disse: “Tudo bem”. Então, eu me desculpei e fui ao banheiro. Peguei meu telefone e procurei no Google a mesquita local, e liguei para eles em silêncio no banheiro. Eu disse: “Com licença, imam, preciso de um favor. Conheço um cristão que adoraria aprender mais sobre sua religião. Você se importa se passarmos aí?”
Levou um tempo para convencer Darrell, mas finalmente chegamos lá. Quando bati na porta, o imam disse que só tinha 15 minutos para nos atender, porque estava se preparando para uma reunião de orações. Eu disse: “Aceitamos”. Nós entramos e, duas horas e meia depois, saímos depois de nos abraçarmos e chorarmos e de modo muito estranho ficarmos amigos falando sobre Chuck Norris por algum motivo.
Não sei o que foi aquilo, mas foi o que aconteceu. Fico feliz em dizer agora que Darrell e o imam podem ser vistos na barraca de falafel local, almoçando juntos.
Vejam, trata-se de uma desconexão entre nós. O ódio nasce da ignorância. O pai dela é o medo, e a mãe é o isolamento. Quando não compreendemos algo, temos tendência a ficar com medo, e, se nos afastarmos, esse medo aumenta e, às vezes, se transforma em ódio. Desde que saí do movimento, ajudei mais de 100 pessoas a se livrarem dos movimentos extremistas, de grupos supremacistas brancos, e até de grupos jihadistas. Não faço isso discutindo com eles, nem debatendo, nem lhes dizendo que estão errados, mesmo que às vezes eu quisesse. Não faço isso. Pelo contrário: não os afasto, mas os trago para perto e escuto com muita atenção às suas fossas e começo, então, a preenchê-las. Tento tornar as pessoas mais fortes, mais autoconfiantes, mais capazes de terem habilidades para concorrer no mercado de trabalho para não terem que culpar o outro, que nunca conheceram.
Antes de ir, gostaria de deixar a vocês uma última coisa. Todas as pessoas com quem trabalhei lhes contarão a mesma história. Primeiro, elas se tornaram extremistas porque queriam pertencer a alguma coisa, e não por causa de ideologia ou dogma. E, segundo, o que as tirou de lá foi receber compaixão das pessoas de quem elas menos esperavam, quando menos a mereciam.
Gostaria, então, de deixar um desafio a vocês: saiam hoje, amanhã – espero que todos os dias – encontrem alguém que vocês acham que não merece sua compaixão e lhe ofereça compaixão, porque garanto a vocês que são essas pessoas as que mais precisam.
Muito obrigado.
copiado https://www.brasil247.com/pt
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