Saúde "Os cortes cegos na área do VIH podem ter consequências desastrosas"


Médico de formação e deputado da Assembleia da República, Ricardo Baptista Leite acompanha há muito as doenças infecciosas. No Dia Mundial da Luta Contra a Sida afirma que é preciso o governo continuar a apostar na luta contra a doença
Vão iniciar-se testes para uma nova vacina contra o VIH. Estaremos mais próximos de vencer esta batalha?
A comunidade científica reconhece que a obtenção de uma vacina contra o VIH iria certamente acelerar a eliminação da epidemia. Infelizmente, pela variabilidade do vírus, a necessidade de incluir milhares de sujeitos nos ensaios clínicos e a complexidade das metodologias subjacentes, tem sido difícil desenvolver estudos sobre vacinas ao longo das últimas três décadas. Aliás, só se realizaram 4 ensaios, sendo que, o último, realizado na Tailândia, foi o que apresentou resultados mais promissores com uma eficácia de 30%. Inicia-se agora na África do Sul mais uma tentativa, com uma variante aperfeiçoada da vacina anterior, envolvendo cerca de 5400 homens e mulheres deste país, que continua a ter das mais elevadas prevalências da infeção. Se obtiver uma eficácia na ordem dos 50% a 60%, poderemos finalmente ter mais uma arma na luta contra a Sida.
Poderemos encontrar uma cura como conseguimos para a Hepatite C?
Acredito que sim e acredito, também, que esse futuro surgirá no decorrer das próximas duas décadas. Mas é importante deixar claro que, com a tecnologia e o conhecimento hoje existentes, podemos já ambicionar acabar com a SIDA como ameaça de saúde pública em todo o planeta até 2030. Este é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável definidos pela Organização das Nações Unidas e que depende apenas e só da vontade e determinação política de implementar as medidas necessárias nos respetivos Estados-membros.
Porque é que tem sido tão difícil chegar à cura?
A enorme variabilidade do vírus e a capacidade de se "esconder" no corpo humano nos chamados "santuários" são características que dificultam o desenvolvimento de respostas definitivas. Resultados de ensaios clínicos em fase I e II começam a mostrar uma luz - mesmo que discreta - ao fundo do túnel. Por isso mantenho a esperança, mas é necessário manter o ímpeto e financiamento para prosseguir os projetos de investigação.
Portugal assumiu o compromisso da ONU SIDA para o plano 90-90-90. Parece já termos atingido o primeiro. Estamos muito longe dos outros dois?
Em 2011 Portugal estava literalmente na cauda da Europa nesta matéria. Apesar da crise financeira, fomos capazes de implementar um plano de ação que nos terá colocado próximo de ter atingido o primeiro 90. Ou seja, segundo a DGS, perto de 90% dos casos de pessoas infetadas em Portugal pelo VIH já estarão diagnosticadas. Infelizmente, este número pode estar sobrestimado mas, seja como for, é uma notícia positiva. Os outros 90 são agora o próximo desafio: garantir que 90% das pessoas diagnósticas estão sob terapêuticas e que 90% destas têm a a infeção controlada. Recentemente fui coautor de um estudo que defendeu a introdução de um quarto 90 - o qual nos deve obrigar a garantir que pelo menos 90% destas pessoas vivam igualmente com qualidade de vida nas suas múltiplas dimensões, o que comporta combatermos todas as formas de estigma e discriminação que ainda existem contra elas na sociedade.
Conseguiremos cumprir o plano até 2020?
Portugal tem a obrigação de cumprir os objetivos com os quais o Governo se comprometeu internacionalmente. Aliás, se fomos capazes de avançar positivamente num tempo de constrangimento financeiro, seria incompreensível que as nossas autoridades falhassem no momento atual. Infelizmente estamos há largos meses à espera de um Plano de Ação para o combate ao VIH, Tuberculose e Hepatites Víricas. Sem estratégia e sem plano de ação, não há milagres. O Governo tem a urgente missão de colocar os recursos necessários ao serviço desta causa para não começarmos a caminhar para trás no combate à SIDA.
E os restantes países que assumiram o mesmo compromisso?
O meu maior receio prende-se neste momento com os países do antigo bloco soviético, incluindo a Rússia. Esta é a única região do globo onde o número de novas infeções continua a aumentar e na qual os governantes continuam a negar o acesso da população a medidas básicas de prevenção como programas de troca de seringas. Se continuarem a fingir que o problema não existe, não se conseguirá quebrar a cadeia de transmissão e a epidemia tenderá a crescer até proporções descontroladas.
Os governos têm sido suficientemente atentos e dedicados neste combate?
A liderança política na luta contra a SIDA tem enfraquecido ao longo dos últimos anos, particularmente pelo facto de hoje a infeção pelo VIH ser uma condição crónica, controlada com terapêutica antirretrovírica. Ao deixar de ser fatal perdeu-se o sentido de urgência no seu combate o que acarreta riscos enormes por podermos, por essa via, facilitar o recrudescimento de casos na comunidade.
E em relação a Portugal?
A resposta é claramente não. Aliás, para além da ausência do plano de ação, recentemente as associações de doentes de pessoas que vivem com VIH vieram denunciar que há hoje um racionamento efetivo na distribuição de preservativos e materiais de prevenção. Os cortes cegos na área do VIH podem ter consequências desastrosas numa perspetiva de saúde pública e por isso urge que sejam tomadas medidas para inverter o atual rumo que está a ser seguido.
No último governo fez parte de um grupo de trabalho na Assembleia da República dedicado ao VIH. O que resultou do trabalho desse grupo?
Não faço parte do atual grupo de trabalho que é hoje liderada pelo Partido Socialista. Volvido praticamente um ano desde a sua constituição só posso lamentar a ausência absoluta deste grupo na discussão da temática e na defesa dos doentes. Na legislatura anterior fomos capazes de gerar consensos entre todos os partidos sobre quais deveriam ser as prioridades políticas no combate ao VIH, participamos ativamente na fiscalização da ação governativa e trabalhamos numa base diária com as associações de doentes e outras organizações não governamentais (ONG) do setor. A primeira exigência que tenho feito é que o Governo, de uma vez por todas, apresente um plano de ação para o combate ao VIH, tuberculose e hepatites víricas, assim como os respetivos recursos humanos e financeiros para o concretizar. O Parlamento deve ser um elemento participativo na construção desse plano e deve garantir uma vigilância apertada à sua concretização.
O relatório da OCDE mostra que Portugal reduziu os novos casos de VIH, mas acima da média nos casos descobertos tardiamente.
Este foi outro feito notável, particularmente se tivermos em conta que o país se encontrava sob um programa de resgate financeiro. O número de infeções tardias baixou de 65% em 2011 para 50% em 2015. Este número continua a ser demasiado elevado, mas devemos valorizar os avanços positivos alcançados. Este facto é particularmente relevante se tivermos em conta que uma pessoa infetada pelo VIH pode viver potencialmente até 10 anos sem sinais e sintomas, desconhecendo a sua condição. Ao não fazer um diagnóstico atempado, não apenas piora o prognóstico do doente, como ao longo desse tempo foi sendo possível que pudesse infetar outras pessoas. Este dado é particularmente marcante se tivermos em conta que à escala global, de acordo com a OMS, 4 em cada 10 pessoas desconhecem por completo que estão infetadas pelo VIH.

Que medidas considera fundamentais, a curto e médio prazo, para Portugal para reduzir mais a infeção?
Precisamos de mais e melhor medidas de prevenção, incluindo nas prisões onde o acesso a programas de trocas de seringas e de preservativos não protegem o anonimato dos reclusos. Temos que acelerar o diagnóstico de todas as pessoas infetadas. É necessário envolver as ONGs que trabalham com as populações mais vulneráveis de modo a desenvolver programas de diagnóstico da infeção em meios não formais de saúde. É fundamental garantir que todas as pessoas infetadas tenham uma via verde no acesso aos cuidados de saúde especializado, sem terem que recorrer a passos burocráticos que afastam as pessoas do SNS. Que todas as pessoas infetadas, seguindo as orientações da OMS, iniciem a terapêutica antirretrovírica no momento imediato em que esteja estabelecido o diagnóstico. Por fim, todas as pessoas sob terapêutica devem ser devidamente acompanhadas por um sistema formal e informal de saúde, entenda-se ONG e associações de doentes, de modo a garantir que a infeção está a ser devidamente controlada e que tudo está a ser feito para salvaguardar o bem-estar físico, psíquico e social da pessoa infetada.

Os portugueses já estão melhor informados sobre a doença e as formas de transmissão?
Há cerca de dois anos foi publicado um estudo que demonstrava que apenas um terço dos jovens universitários do nosso país utilizam preservativo em contactos sexuais ocasionais. Mais, sabemos hoje que a maioria das novas infeções ocorre abaixo dos 30 anos de idade e acima dos 50. Ou seja, precisamente as faixas populacionais que foram menos informadas sobre os riscos associados aos comportamentos de risco. Mais do que nunca, urge integrarmos uma formação para a cidadania e para a saúde como disciplina independente que acompanhe os jovens ao longo do seu percurso académico. Sem literacia para a saúde, todas as demais medidas acabam por ser menos eficazes.

COPIADO http://www.dn.pt

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