Este artigo, que acompanha o filme Karollyne, de Heloísa Passos, é o segundo e último da série, publicada originalmente em 2015. A primeira parte acompanha o filme Passarinho (“Birdie”).
A aproximadamente sete minutos de carro da minha casa, descendo a estrada que corta a Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, fica um acampamento em que moram diversas famílias desabrigadas. Como fica atrás de um muro, não é possível ver as barracas da rua. Mas o que quase sempre se nota ao passar de carro é um batalhão de cães nas mais variadas circunstâncias, brincando ou cochilando, em frente ao muro.
Ao longo dos anos, vi essa matilha inúmeras vezes. Sempre me intrigou o fato deles estarem obviamente bem alimentados e cuidados, embora evidentemente vivessem na rua. O número exato de cães também era um mistério. Era possível notar novos cachorros no grupo a cada vez que se passava pelo muro.
Como pude depois comprovar, as vidas por trás desse muro são incríveis. Além disso, são objeto central de Karollyne, a segunda parte do filme de Heloísa Passos para Field of Vision sobre desabrigados cariocas e seus cachorros. (A primeira parte, Passarinho, foi publicada na semana passada.) Em 2009, Karollyne, uma transexual negra, se mudou para essa construção decadente e abandonada. Ela convidou uma de suas amigas desabrigadas, outra mulher transexual, para morar na mesma casa. Desde então, elas conheceram homens que consideram serem seus maridos e lá moram com elas. Os dois casais agora receberam mais três amigos, formando uma família de sete pessoas muito unidas.
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Assita a Karollyne, um filme sobre uma mulher que vive em uma mansão abandonada na Floresta da Tijuca, Rio de Janeiro, com um batalhão de cachorros.
Juntos, eles cuidam de 19 cachorros e 4 gatos. Todos os animais foram encontrados na rua, geralmente abandonados na floresta. Karollyne e seu grupo os trouxeram para casa ao encontrá-los sofrendo em diversos graus de agonia, fome, trauma e doença. “Não consigo ver um animal sofrendo, sabendo que posso ajudá-lo, e simplesmente dar as costas”, conta Karollyne. O fato de ser desabrigada e ter dificuldade em sobreviver com o pouco que tem não parece abalar sua crença em “poder ajudar” esses animais. “Sacrifico o que posso para ajudá-los e sei que ofereço uma vida confortável para eles”.
Ao visitar o alojamento, qualquer dúvida a respeito da afirmação acima é instantaneamente esclarecida. De fato, os animais são todos limpos e bem alimentados. Os cachorros têm amplo espaço para explorar, correr e brincar. Os gatos, sendo gatos, encontram pontos elevados para observar tudo de cima, descendo ao nível dos cachorros ocasionalmente para se socializar, mantendo a pompa de realeza ao desfilar entre seus súditos. O grupo é calmo e bem comportado, mesmo com a chegada de um estranho. Há diversos pratos cheios de comida de cachorro e gato, além de baldes transbordando com água fresca. Em lugar da carência e do caos esperados, há equilíbrio e uma evidente satisfação coletiva.
A vida de Karollyne foi marcada por um sofrimento constante e dificuldades inimagináveis: o abuso sexual durante a infância, a prisão durante a adolescência, o assédio por ser uma mulher transexual. Tudo isso aconteceu durante os anos em que morou nas ruas. Em vez de cultivar amargura e autopiedade, essas experiências criaram uma empatia extraordinária frente ao sofrimento de outros seres vivos. “Minha felicidade vem de cuidar de todos os animais que estejam sofrendo: cachorros, gatos, macacos”, disse Karollyne. “Tentamos alimentar e cuidar de todos eles aqui. É meu propósito na vida”.
O único momento em que Karollyne expressa raiva é quando fala de pessoas que abandonam os animais de que ela cuida com a ajuda da família. “Pessoas ricas vêm e largam seus cachorros aqui para morrerem de fome. Como alguém pode ser tão cruel?” Pessoas desabrigadas são habitualmente julgadas e condenadas pela mentalidade burguesa. Mas a outra face dessa dinâmica é surpreendente: um grupo de pessoas que não tem quase nada e que, literalmente, não sabe de onde virá sua próxima refeição, assume um compromisso violado por aqueles que têm tudo. “Não sei como eles conseguem dormir depois de fazerem isso”, ela questiona.
Quando visitei o acampamento para mostrar a versão final do filme, Karollyne, seu marido e um de seus amigos me encontraram ainda na rua e insistiram em me mostrar algo: o último cachorro que socorreram desde o fim das filmagens. Um poodle branco de aproximadamente um ano de idade tinha sido abandonado na floresta e foi encontrado por ele três semanas antes. “Quando o encontramos, ele estava quase morrendo: muito magro, cheio de pulgas, sem energia e com um olhar distante”, disse Karollyne. O cachorro brincalhão, enérgico, simpático e muito bem cuidado que eles me apresentaram é prova do carinho e atenção constantes dados ao cão desde que chegou à casa. Todos falavam como pais orgulhosos, contando de forma animada e detalhada sobre os amigos que o cachorro havia feito no grupo e as dificuldades que ainda encontra.
Como mostra o filme, o mundo construído por Karollyne e sua grande família é extraordinário em diversos aspectos. Além disso, revela um modelo extremamente promissor. Em muitas cidades, há projetos criados para ajudar desabrigados e projetos dedicados a animais abandonados. O acampamento por eles criado cumpre as duas funções ao mesmo tempo. Não apenas socorre animais, como oferece aos indivíduos marginalizados pela sociedade um trabalho gratificante e enriquecedor. Trabalhar neste artigo e no filme, bem como o abrigo informal de Karollyne, inspirou este conceito: abrigos de animais administrados por desabrigados que amem animais. A história de Karollyne deixa claro o potencial de um projeto como esse.