Um funeral para a universidade pública de qualidade

Por enquanto, Doria só mostrou eficiência em uma área: marketing. Fez cosplay de diversas profissões, convocou coletiva para anunciar que conseguiu emprego para um único cidadão, participou de mutirões e até virou cadeirante por um dia. Não nego a importância de gestos simbólicos por parte dos nossos representantes, mas Doria exagera, espetaculariza e faz da prefeitura o seu programa de auditório. Agora só está faltando vestir aquele terninho impecável, esquecer um pouco dos holofotes e encarnar a profissão prefeito. Se formos levar em conta o seu primeiro mês de gestão, Doria já merece um imenso latifúndio plantado de pau-brasil.
Orçamento cada vez mais magro, greves recorrentes e o fantasma da privatização pairando no ar: o retrato da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) reflete o cenário apresentado em outras instituições públicas de ensino superior do Brasil, como as universidades estaduais de São Paulo, da Bahia e até mesmo da rede federal.
“Em praticamente todos os Estados da Federação há informes de que as universidades estaduais e municipais passam por momentos difíceis, em muitos casos interrompendo serviços que beneficiam sobretudo a parcela mais carente da população”, manifesta-se, em nota, a Associação Brasileira dos Reitores das Universidades Estaduais e Municipais.
A crise que assola o Rio de Janeiro trouxe consequências extremas às universidades Norte Fluminense (Uenf), da Zona Oeste (Uezo) e do Estado do Rio de Janeiro. Hoje, o governo deve R$ 402,5 milhões às três instituições. Com salários atrasados e sem condições mínimas para voltar a operar — como a falta de serviços de higiene e segurança dentro dos campi — os funcionários e alunos temem o fechamento das portas, a municipalização ou privatização dos serviços.
Em resposta aos cortes, representantes de diversas instituições de ensino e pesquisa em nível superior se organizaram em manifestações que estão acontecendo dentro da Uerj, desde o início do mês, em sua defesa. Na manhã desta terça-feira, dia 24, os manifestantes realizaram um enterro simbólico da educação superior pública, que foi chamado de “Uerj de luto na luta”.
A presidente do sindicato dos trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz, Justa Helena Franco, esteve no protesto “abraço à Uerj”, dia 19, e falou ao The Intercept Brasil:
“É um projeto muito bem articulado de privatização. A voz corrente é a de que só haveria condições de fornecer o básico e de que as universidades teriam de seguir um modelo americano, um modelo de países desenvolvidos em que as pessoas teriam de pagar. Ora, quem teria dinheiro para pagar para entrar na universidade? Isso é uma exclusão da população sem precedentes no nosso país.”
A pauta do financiamento privado de universidades públicas foi mais uma vez defendida em um editorial do jornal O Globo, publicado dia 22 de janeiro, e em um artigo do ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso, publicado no mesmo jornal uma semana antes.
“A crise da Uerj revela não apenas a falência do Estado do Rio, mas também de um modelo de financiamento da universidade no Brasil”, escreveu Barroso, que tem graduação e doutorado feitos na Uerj e leciona na faculdade de direito de lá. O ministro defende que “a universidade brasileira vai ter de aprender a viver com recursos próprios, só contando com dinheiro público para alguns projetos específicos”. O artigo foi rebatido por representantes da universidade, e o jornal contra-argumentou que “a única alternativa para compensar a falta de dinheiro público são recursos privados”.
Em uma resposta irônica, os manifestantes criaram a iniciativa “vaquinha Uerj” que, em vez de dinheiro, pede pela mobilização da sociedade. Um texto no site do movimento explica: “Para manter uma universidade do porte da Uerj com contribuições voluntárias, precisaríamos de 10 MIL doadores bancando R$ 9 mil mensais. É uma vaquinha impossível! Voluntarismo e filantropia não sustentam grandes universidades. Por isso, precisamos pressionar o governo para que invista o dinheiro que os contribuintes já pagam na forma de impostos”.
Estudantes, professores e servidores organizam o protesto “Uerj de luto, na luta”, no dia 24 de janeiro.
Foto enviada pela leitora Denise Dias
Em São Paulo, a saída para a crise foi drástica. No ano passado, o estado contingenciou R$ 233 milhões das três universidades sob sua tutela: a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp). Os cortes começaram em 2015 e, para 2016, cálculos estimam déficit de R$ 230 milhões para a Unicamp e de R$ 659,91 milhões para a USP. A saída apresentada pelas reitorias foi criar programas de incentivo à demissão voluntária e redução da jornada de trabalho com redução proporcional do salário.
Na Bahia, as quatro universidades estaduais (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, Universidade do Estado da Bahia – UNEB e Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC) protestam juntas contra a grave crise orçamentária que enfrentam. Em notas públicas, as instituições alertam que, desde 2015, denunciam “a grave crise que punha em risco o próprio funcionamento”. Segundo levantamentos internos, entre 2013 e 2016 foram cortados cerca de R$18 milhões do orçamento de manutenção apenas da Uesb.
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Estudante participa de manifestação “abraço à Uerj”, no dia 19 de janeiro.
Foto: Helena Borges
Já entre as federais, o gargalo se deu quando, a partir de 2012, a rede foi ampliada e o orçamento não acompanhou a expansão. Os cortes ainda não chegaram aos salários, mas já impedem a manutenção da infraestrutura das instituições. É o que explica Orlando Afonso do Amaral, presidente da comissão de orçamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes):
“Os orçamentos têm sido atualizados de forma insuficiente. E, para a parte de manutenção do custeio, que é fundamental para manutenção das atividades de dia a dia, pagar contas de luz e reformar os laboratórios, por exemplo, esse valor está sendo reduzido a cada ano. Em 2016, foram R$3,3 bilhões para todas as federais, este ano serão R$3 bilhões.”
Custeio é a parte do orçamento destinada aos gastos com a manutenção e a conservação da infraestrutura, aquisição de material de trabalho e pagamento de serviços terceirizados, como limpeza e segurança. Na Uerj, os cortes no custeio se seguem desde 2013. O orçamento de custeio, com valores ajustados pela inflação, caiu de R$576 milhões em 2013, para R$506 milhões em 2014 e R$476 milhões em 2015. Os pagamentos de 2016 não foram concluídos, segundo uma nota oficial do governo do Rio. O governo informa que “76% do orçamento total da Uerj foram efetivamente repassados” e que foram repassados R$ 189,2 milhões em custeio.
Faixas na frente da Uerj denunciam os salários atrasados e os cortes no orçamento de custeio.
Foto: Mídia NINJA
Limitar o orçamento da educação superior é limitar também as chances de crescimento de milhões de jovens que ingressam nas universidades públicas por cotas afirmativas, e o desmonte da universidade do Rio é um retrato claro disso. A Uerj foi a primeira universidade no país a adotar o sistema de cotas, quase dez anos antes da Lei de Cotas.
Roberto Lourenço é aluno do quinto período da faculdade de biologia. Ele mora na baixada fluminense e precisa da bolsa para arcar com as despesas do transporte, afirma que “se não fosse a Uerj, não teria acesso a uma formação de qualidade”. Lourenço afirma que colegas de curso já desistiram das aulas por não terem condições de pagar pelo transporte ou pela alimentação e que muitos já imploraram aos professores para cancelarem provas, porque as bolsas estavam atrasadas, e eles não teriam como ir à faculdade.
Defender a cobrança de mensalidades para alunos de universidades públicas é ir contra o movimento de inclusão social que levou pessoas como Lourenço — e outros 12 mil cotistas da Uerj — a uma educação superior de qualidade.
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Manifestantes protestam contra a privatização de serviços da Uerj na frente do Palácio Guanabara, sede do governo estadual do Rio de Janeiro, no dia 18 de janeiro.
Foto: Mídia NINJA
Apesar dos cortes, as universidades públicas conseguem permanecer entre as melhores do país. Das 50 melhores universidades da América Latina em 2016, 18 são universidades públicas brasileiras, apenas 5 particulares. No entanto, as quedas de investimentos já se revertem em queda de qualidade. Entre 2013 e 2016, quando os cortes se intensificaram, a USP, melhor universidade do Brasil, caiu aproximadamente 100 posições no ranking mundial: passou do 158º lugar para um empate do 251º ao 300º colocados.
Para Javier Botero Álvarez, especialista do Banco Mundial que monitora a educação superior na América Latina e fez uma análise sobre o ranking, “o montante investido por aluno nas universidades públicas brasileiras ainda é baixo” se comparado com outros países. Ele acredita que a falta de financiamento adequado ainda será um problema para a educação superior brasileira “por alguns anos”. Se depender do atual governo e de suas medidas de austeridade, serão, mais especificamente, vinte anos.

Vestindo uniforme de gari e sapatênis Osklen, o prefeito de São Paulo João Doria Jr plantou uma muda de pau-brasil na avenida 23 de maio e discursou para as câmeras: “Essa é uma muda de pau-brasil. Vou dedicar o plantio dessa muda ao Lula, Luiz Inácio Lula da Silva, o maior cara de pau do Brasil. Presente para você, Lula”. Logo o Doria, um político que se elegeu negando ser político mesmo tendo construído carreira na iniciativa privada escorado na mais pura politicagem.
Espetáculos midiáticos desse tipo têm sido a grande marca da nova gestão até aqui. Dia sim, dia não, lá está o prefeito vestido de operário e fazendo algum serviço braçal diante da plateia. Todas essas ações fazem parte do programa Cidade Linda, que parece ser a menina dos olhos da administração tucana. Segundo o prefeito, o objetivo é “fazer da cidade de São Paulo um local mais agradável para se viver e para se frequentar”.
Mas parece que nem todos os paulistanos irão desfrutar das maravilhas deste embelezamento. Numa das primeiras ações do programa, a prefeitura retirou moradores em situação de rua de uma praça no centro e os colocou debaixo do viaduto 9 de julho. Hoje, eles ocupam uma das duas quadras de futebol improvisadas que eram utilizadas diariamente por jovens e crianças da Bela Vista – região carente de equipamentos esportivos públicos. E para o programa ser cumprido com louvor, foi instalada uma tela verde para impedir que os moradores sejam vistos por quem passa pela avenida.
(Reprodução/TV Globo)
Soninha Francine, secretária de Assistência e Desenvolvimento Social, diz que a tela é para dar “privacidade” e “segurança” aos novos moradores do viaduto e nega a intenção de escondê-los: “se fosse para esconder as pessoas, a gente colocava um tapume”. Um dos moradores em situação de rua entrevistado pelo UOL dá outra versão: “eles (funcionários da prefeitura) vieram com madeirite, queriam tapar tudo. A gente bateu o pé, porque a gente precisa de ar. Aí eles vieram com essa tela mais fina”. Doria também deu uma maquiada em um decreto de Haddad ao retirar um veto à remoção de papelões, colchões, colchonetes, cobertores, mantas, travesseiros, lençóis e barracas desmontáveis dos moradores de rua” – provavelmente mais uma ação do Cidade Linda. Na frente das câmeras, o prefeito abraça a população de rua. Longe delas, dá liberdade para a Guarda Civil Metropolitana roubar os bens de quem já não tem quase nada.
A maquiagem parece ser mesmo a principal ferramenta de trabalho da gestão Doria. As avenidas Paulista e 9 de Julho passaram por uma operação tapa-buraco, mas, em duas semanas, alguns buracos já reapareceram o que significa que mais dinheiro será gasto para consertar a maquiagem. A eficiência e a produtividade da iniciativa privada prometidas pelo novo prefeito ainda não saíram do discurso.
Doria não achava bonito os murais de grafite da avenida 23 de maio e teve a grande ideia de pintar tudo de cinza. Deixar a cidade ainda mais cinzenta pareceu genial na mente do prefeito. Como parecia óbvio, ninguém gostou do resultado. Nem ele. Mas um bom gestor toma decisões rápidas e a prefeitura já anunciou que irá trazer de novo o colorido através de um “Festival de Grafite com artistas selecionados e materiais fornecidos pela gestão”. Ou seja, a exemplo da operação tapa-buraco, gastou-se dinheiro público para pintar de cinza e agora vai gastar mais pra colocar os grafites de volta. A isso chamam de boa gestão.
Mesmo assim, Doria não tem dúvidas de que sua administração já é um sucesso. Nem completou um mês, e o prefeito já estava preparando uma palestra cujo tema seria “’O impacto de uma gestão eficiente na cidade de São Paulo’”. A palestra em si já representa grande impacto para os que zelam pela transparência na administração pública, já que quem a oferecerá é a Lide famosa empresa de lobby da família do prefeito.
Os interessados em sentar ao lado do prefeito no evento deveriam contribuir com R$ 50 mil (quase o dobro do salário de prefeito, de R$ 24 mil –  valor que o Doria prometeu doar para entidades carentes). Depois das críticas, o prefeito voltou atrás mais uma vez e cancelou a palestra, mas continuou negando haver algum conflito ético no episódio.
Em outra ação cinematográfica, o prefeito de Hollywood convocou uma coletiva de imprensa para compartilhar sua generosidade. Como se fosse um apresentador fofo de programa que ajuda pobre na TV, Doria anunciou que conseguiu emprego de gari para o irmão do vendedor ambulante assassinado numa estação de metrô. Foi bonito demais. Só faltou um close nos olhos marejados do prefeito e uma trilha sonora para emoldurar a emoção do momento.
A torcida organizada de Doria segue empenhada em sua defesa. É uma relação bonita, tal qual Sílvio Santos e seu auditório. A caravana do IG, um dos portais mais acessados do Brasil, publicou uma propaganda travestida de editorial  com o seguinte título: “Em menos de 2 semanas, Doria mudou o jeito de governar São Paulo. Para melhor”.
A caravana do MBL também encerou o seu chapabranquismo e já não consegue mais maquiar aquele apartidarismo de fachada:
Os jovens do MBL provavelmente não se importam com as promessas que ele não irá cumprir, tais como: congelamento de tarifa de ônibus (aumentou a tarifa), o fim das filas em creches em um ano (secretário já sinalizou que não será possível) e o corte de 15% dos contratos com empresas de ônibus (empresários de ônibus pressionaram e Doria retrocedeu).
Nem vou falar sobre o aumento da velocidade nas marginais que contraria a tendência internacional e uma recomendação da ONU , já que esta era uma das principais promessas de campanha de um prefeito eleito em primeiro turno com amplo apoio da população paulistana. Para provar que a decisão foi correta, a prefeitura apresentou essa semana números bastante diferentes do relatório apresentado pela CET no ano passado. Segundo a nova contabilidade, as mortes por acidentes nas marginais mais que triplicaram depois da redução de velocidade. A prefeitura não explicou a mudança drástica nos números, o que me leva a acreditar que esta maquiada é mais uma ação do projeto Cidade Linda.
Por enquanto, Doria só mostrou eficiência em uma área: marketing. Fez cosplay de diversas profissões, convocou coletiva para anunciar que conseguiu emprego para um único cidadão, participou de mutirões e até virou cadeirante por um dia. Não nego a importância de gestos simbólicos por parte dos nossos representantes, mas Doria exagera, espetaculariza e faz da prefeitura o seu programa de auditório. Agora só está faltando vestir aquele terninho impecável, esquecer um pouco dos holofotes e encarnar a profissão prefeito. Se formos levar em conta o seu primeiro mês de gestão, Doria já merece um imenso latifúndio plantado de pau-brasil.

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