Nada foi mais
cercado de expectativa nos últimos meses da política brasileira do que o
discurso de Dilma Rousseff para os senadores em sua última cartada para
tentar salvar seu mandato. A aceitação de seu impeachment era
previsível, mas, para o seu discurso, havia uma expectativa sobre um
conteúdo surpreendente. A presidente fez uma boa fala, com partes mais
incisivas, mas não o suficiente para reverter votos – e nada épico,
também. Sequer citou nominalmente Michel Temer, maior beneficiário de
sua queda.
Mas eis que vieram as perguntas e
respostas. Em tese, o momento para a apresentação de tecnicalidades, sem
toda aquela atenção por parte da mídia. Mas, se pesquisadores
precisarem de algo em que se apoiar para futuras avaliações do que
acontece no Brasil neste momento, assistir às 13 horas de interrogatório
de Dilma será bem mais interessante.
Listamos 10 razões pelas quais esses
momentos foram muito mais marcantes para a política brasileira, e para a
própria biografia de Dilma Rousseff, do que seu discurso inicial.
1) Paciência de Jó
Dilma, com quase 69 anos de idade,
prestou um dos maiores, se não o maior, depoimento de que se tem
registro na história do Congresso Nacional – certamente, o maior de uma
mulher. Foram mais de 13 horas de perguntas e respostas, com duas horas
de intervalo, num total de 11 horas – fora as considerações iniciais de
quase uma hora. A sabatina cercada de polêmica do agora ministro do STF
Edson Fachin durou 12 horas,
mas somente as questões de ordem discutidas entre os parlamentares
inicialmente levaram duas horas. O governador de Goiás, Marconi Perillo,
na CPI do Cachoeira,
em 2012, respondeu a perguntas de parlamentares por mais de oito horas.
No Conselho de Ética da Câmara, Eduardo Cunha bateu neste ano o recorde
daquele fórum, ao ser ouvido por sete horas.
2) Não teve cola
A presidente nunca foi de improvisos.
Ao contrário do ex-presidente Lula, que tem uma oratória invejável e
causos e mais causos para entreter plateias das mais variadas, Dilma é
robótica. Tem dificuldades de concatenar argumentos quando precisa se
ater a oficialismos, nunca foi fã de entrevistas. Seu discurso foi lido,
mas, mais que isso, passou pelas mãos de muitos colaboradores. Suas
respostas às perguntas dos senadores foram marcadas pela espontaneidade.
Deu até para dar risada, apesar da situação que ela estava enfrentando.
Ao responder, por exemplo, o senador Cassio Cunha Lima (PSDB-PB), que
disse que o impeachment nasceu das ruas, Dilma lembrou do desvio de poder de Eduardo Cunha ao aceitar a denúncia contra ela e que parte dos líderes das manifestações de rua pró-impeachment posava para fotos
com o ex-presidente da Câmara. Rindo, disse ao senador tucano: “A vida é
assim, senador, dura”. O próprio senador acabou com um sorriso amarelo.
3) Olho no olho
Usando um artifício psicológico,
buscou olhar o tempo inteiro nos olhos dos senadores que declaradamente
votariam por sua deposição. Figuras com quem ela teve atritos claros,
como o senador José Agripino
(DEM-RN), ou Aécio Neves (PSDB-MG), derrotado por ela nas últimas
eleições, foram alvos de olhares bem diferentes daqueles registrados em
seu discurso de ontem pela manhã.
4) Sem vergonha de tabelas
Não se furtou a apelar para a
tecnicalidade quando necessário. Ouvia perguntas lidas de forma a
fazê-la cair em contradição, e buscava responder na mesma moeda, também
expondo aspectos técnicos. Repetiu à exaustão os argumentos de sua
defesa para bancar que não cometeu crimes de responsabilidade. Ainda na
resposta ao líder do PSDB, Cassio Cunha Lima, Dilma fez piada com seu
gosto pelas planilhas. “Se vamos começar a mostrar tabelas, eu também
mostro. Não gosto de fazer isso porque sempre me acusaram de gostar de
Power Point”.
5) Temer como alvo
Diferente do discurso da manhã,
escrito com bastante cautela, em que não citou nenhuma vez o nome de
Michel Temer, Dilma partiu para o ataque no interrogatório. Em resposta a
Cristóvam Buarque (PPS-DF), que perguntou sobre as qualidades que Dilma
havia visto em Temer para escolhê-lo para ser seu vice em duas
eleições, a presidente respondeu, com direito a menção a gravações da
Operação Lava Jato: “O deputado federal Michel Temer foi escolhido para
ser meu vice-presidente porque supúnhamos que ele era integrante desse
centro democrático, progressista, transformador. Por isso, ele foi
convidado. Nós acreditávamos que ele representava o que havia de melhor
no PMDB. Senhor senador, eu não sei dizer quando isso começou a mudar,
mas o certo é que começou a mudar quando, ao ser gravado, o senador Jucá
disse que “Michel é Cunha”. Ele queria dizer o quê? Michel Temer
integra o grupo do deputado Eduardo Cunha.”
6) Casa de ferreiro, espeto de pau
Teve serenidade para ouvir lições de moral de senadores com moral bastante duvidosa.
Zezé Perrella (PTB-MG), também dando a deixa para Dilma falar de Temer,
disse a ela que “não há um único voto que vossa excelência tenha
recebido, que ele também não tenha recebido”, argumentando contra a tese
dela de que seus 54 milhões de votos recebidos nas últimas eleições
estavam sendo desrespeitados com o processo de impeachment. Sua resposta
lembrou o papel do PMDB em sua aliança, que era garantir apoio
parlamentar. “Os votos, senador, não são do senhor Michel Temer. Os
votos foram obtidos por mim”, disse.
7) Amigos, amigos…
Dilma, em seu longo interrogatório,
teve estômago até para ouvir que um antigo amigo pessoal seu apoiaria
sua derrubada da Presidência. José Aníbal (PSDB-SP) militou com Dilma
contra a ditadura militar e foi um dos menos respeitosos a ela em sua
pergunta. Disse ele que o governo de Dilma “já não existe mais” e que,
“em horas, já não existirá mais a sua presidência”. A resposta de Dilma
foi uma das quais ela mais mostrou irritação: “Senhor senador José
Aníbal, a quem eu conheço a 50 anos. Sei perfeitamente da forma pela
qual o senhor se conduz. Espero que o senhor tenha em relação a esse
processo uma posição de imparcialidade e que o senhor não me condene
antes da hora. Acho que é uma falha profunda no devido processo legal, e
eu nunca soube que isso era possível, um julgador, na hora em que uma
testemunha está depondo, externe o seu julgamento. Lamento, senador Zé
Anibal, que o senhor não cumpra os mínimos princípios do devido processo
legal, que me assegura amplo direito de defesa. E fico estarrecida por
isso partir do senhor, que me conhece há muitos anos”.
8) Habemus golpe
Depois de aparecer contida em seu
discurso, em que fez poucas menções ao golpe que ela e seus apoiadores
bradam aos quatro ventos no dia a dia, Dilma perdeu o pudor de afirmar
que o processo que enfrenta é um golpe parlamentar – na frente dos
parlamentares. Certamente, não conquistou simpatias. Mas deixou seu
recado. Em resposta a Zezé Perrella, por exemplo, disse, repisando suas
teses jurídicas: “Me julgar por um crime que eu não cometi, sendo eu
presidente da República, implica necessariamente em me condenar num
processo que tem todas as características de um golpe parlamentar no meu
mandato”.
9) “Veja bem…”
Buscou apontar diretamente
contradições de quem, com ou sem razão, apontava o dedo para ela. Aécio
Neves lembrou que as contas da campanha vitoriosa de Dilma são alvo de investigação pelo TSE. Dilma, ao responder, também lembrou: “Quero lembrar ao senhor que também foi aberto
contra as suas contas investigação. Portanto, senador não é essa a
questão”. Ao comentar as acusações de que seu governo produziu
indicadores terríveis, o que também é verdade, Dilma lembrou ao tucano
que foi alvo de forte boicote político. “Não acho de maneira alguma que a
situação que eu enfrentei, a situação que qualquer presidente da
República enfrentará, diante de crises que são cíclicas, no mundo atual,
em relação à economia internacional – e não só ao Brasil–, que essas
flutuações cíclicas podem ser encaradas sem uma cooperação entre os
diferentes órgãos do poder. Não podem, senador.”
10) Uniforme de guerra
Ninguém notou, mas Dilma Rousseff usou a mesma roupa com a qual visitou o Congresso no início deste ano,
ainda como presidente, para inaugurar o Ano Legislativo. Na ocasião,
cumprimentou friamente Eduardo Cunha, que já tinha admitido a denúncia
pelo impeachment. Era a abertura do ano no qual o Congresso acabaria com
qualquer possibilidade de ela voltar àquele tipo de solenidade. Voltar
ao Congresso para sua última visita como presidente com aquela mesma
roupa não deve ter sido mera coincidência.
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