Serrano: “impeachment mostra que Brasil não é tão diferente do Paraguai”


Serrano: “impeachment mostra que Brasil não é tão diferente do Paraguai”

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Perguntei a Pedro Estevam Serrano, um dos mais influentes constitucionalistas brasileiros, como ele enxerga o impeachment de Dilma Rousseff.
-- Uma medida de exceção. Prova que o Brasil não é tão mais complexo que Honduras ou Paraguai.

A leitura das 180 páginas de "Autoritarismo e golpes na América Latina -- breve ensaio sobre jurisdição e exceção",  obra de Serrano que acaba de chegar às livrarias, é um desses trabalhos obrigatórios para se entender os dias de hoje. Ajuda a responder perguntas urgentes -- inclusive a dificuldade do Partido dos Trabalhadores para contribuir, durante quatro mandatos presidenciais, para a defesa do  Estado Democrático de Direito, não só para assegurar  garantias à população pobre e superexplorada das grandes cidades, mas também para enfrentar o "fascismo em novos trajes" exibido pela justiça do espetáculo da AP 470 e do Lava Jato.
Advogado com um histórico de ideias progressistas, uma carteira de clientes que inclui várias empresas investigadas na Lava Jato,  e uma atividade respeitada como professor da PUC de São Paulo,  Pedro Serrano tem conhecimento acumulado para compreender a origem dos problemas que ameaçam o Estado Democrático de Direito numa época em que era comum acreditar que a democracia se tornara um valor universal e as ditaduras pertenciam a uma etapa encerrada da evolução humana.
"Autoritarismo e Golpes na América Latina" faz um viagem intelectual -- compreensível também para leigos --  que passa por Carl Smitt, principal arquiteto jurídico do regime nazista, e também por Giorgio Agamben, principal crítico dos avanços do estado de exceção no mundo contemporâneo. Com uma visão ampla da igualdade entre seres humanos, Serrano atribui a noção de que todos somos filhos do mesmo pai, nascida com o cristianismo e mais tarde adotada pelo iluminismo, como "o conceito mais revolucionário  da história do homem na Terra." Sua entrevista:
BRASIL 247 -- Já é quase um lugar comum dizer que os grandes problemas enfrentados pela democracia brasileira tem origem na transição da ditadura para a democracia, quando não se fez o necessário ajuste de contas com o regime militar.  Antes de mais nada, não se puniu a tortura, que, depois de sobreviver  durante anos nas delegacias e prisões, chegou a votação do impeachment na Câmara, quando Jair Bolsonaro homenageou o coronel Ustra.  Como é isso?
PEDRO SERRANO -- Não transitamos, integralmente, como sociedade, para a democracia. A maior parte dos brasileiros simplesmente não conhece o Estado Democrático de Direito. É governada por um Estado de Exceção. O Estado brasileiro tem vários inimigos, a quem se nega sua proteção, numa vida nua, como explicam os estudiosos dos campos de concentração do nazismo.
BRASIL 247 -- Eu gostaria que você falasse de sua experiência como advogado, professor e cidadão, para explicar por que mesmo pessoas de ideias progressistas tem tanta dificuldade de compreender que a ampliação do Estado de Direito, com garantias asseguradas a todos, deveria ser a prioridade absoluta para a construção de um regime democrático.  É ignorância? Preconceito de classe?  
PEDRO SERRANO -- O preconceito me parece mais adequado para falar de pessoas conservadoras. Elas costumam favorecer toda medida de preservação da ordem vigente, o que inclui esse Estado de Polícia em que sobrevive a maioria dos brasileiros. No caso das pessoas progressistas, me parece, a resposta tem várias dimensões.
Falta à esquerda democrática, como faltou a Marx, uma teoria do Estado e do governo
De fato, não sabemos o que seria um Estado ou um governo de esquerda na vida contemporânea
A proposta genérica de Marx, de socialismo como etapa para um comunismo sem Estafo, me parece insuficiente se não equivocada para uso na atualidade, num projeto emancipador da humanidade.
BRASIL 247 -- Daria para explicar melhor?
SERRANO -- Temos de perguntar se socialismo é uma ditadura da maioria. Se for, estamos falando de um estado de exceção, que não se indaga sobre o imenso poder exercido pela burocracia de Estado, não pergunta pelas singularidades individuais e suas diferenças e uma serie de questões típicas da divida contemporânea. A ideia de que é possível libertar um país por uma ditadura, mesmo da maioria, a mim não convence. Não é só isso, porém. Parte da esquerda entende, ainda hoje em dia, os direitos humanos como uma conquista burguesa e não como uma conquista humana. A meu ver essas são as gêneses do que se pode chamar de um " fascismo de esquerda" , obviamente tendo- se a expressão fascismo no sentido histórico, mas como um paradigma da Exceção. Essa perspectiva autoritária de esquerda é que levam esses setores a só tratar da defesa dos direitos humanos quando estão na posição de vítimas.
BRASIL 247 -- Qual a consequência dessa visão?
SERRANO -- Quem entende direitos humanos como conquista humana, os defende para todos , inclusive adversários políticos. Devem ser  universais --  mesmo. Uma pessoa em posição socialmente privilegiada não pode ter seus direitos suprimidos ou negados. Já vimos, inclusive no Brasil de hoje, que atacar os direitos de quem pode pagar por um advogado é uma das formas mais comuns para se atacar direitos que deveriam ser acessíveis a todos, inclusive os mais pobres. Usa-se, demagogicamente, o anseio por igualdade para combater a igualdade. O fascismo judicial que se espalha pelo mundo, o chamado punitivismo e o uso da jurisdição como agente da exceção, é um instrumento claro da direita.  Mas não é sua propriedade exclusiva. Basta ver, na Venezuela os processos criminais contra opositores do governo Maduro.
BRASIL 247 -- Na condição estudioso com conhecidas ideias de esquerda, como você, combina essa noção de que todos somos iguais perante a lei com a noção clássica do marxismo, que explica o progresso humano através da luta de classes?
SERRANO -- Creio que Marx é uma referencia de extrema importância na reflexão politica e filosófica do mundo atual, mas não creio que possa ser a única. Sinteticamente creio que a luta de classes é referencia insuficiente para explicar as diversas formas de opressão do homem pelo homem , agora e na história. Não explica satisfatoriamente a opressão nas questões  de gênero e de diversidade sexual , não trata das liberdades publicas de forma adequada, como o direito a fazermos de nosso corpo o que quisermos por exemplo. Também não responde às necessárias limitações ao poder burocrático do Estado nem a necessidade de vigilância sobre eles. Devo a Marx a  crítica ao Capital mas desconfio demais do Estado e de todas as formas de poder para crer em ditaduras ou em classe social como conceito que supere o de humanidade. Não acredito que qualquer forma de Estado de Exceção possa levar a algum avanço emancipatório.
BRASIL 247 -- No livro, você lembra que o "comunista" era o grande inimigo interno do regime de 64, a quem se negava todos os direitos da pessoa humana e, através dele, a toda sociedade. Após a AP 470 e a Lava Jato, marcadas por diversas medidas de exceção contra integrantes dos governos Lula e Dilma, e também do Partido dos Trabalhadores, podemos dizer que está em curso um processo para tentar transformar o "petista", ou "lulista", ou "lulopetista" em inimigos internos?
SERRANO -- Sou mais pessimista. Não  acho que é só o petista o inimigo o drogado, o corrupto, o fascista,o machista , o pedófilo , o estrangeiro ,o coxinha , o bicha etc. Dependendo do contexto em que estas ou outras expressões são usadas, a generalização serve ao agenciamento da exceção e a transformação do humano em vida nua, vida sem proteção política Desumanizamos o outro por imputações generalizantes Ai funciona o campo de concentração como paradigma no lugar da pólis, como fala Agambem  (Georgio Agamben,mestre italiano, uma das principais referências de Autoritarismo e Golpes na América Latina) No campo de concentração as pessoas eram designadas pelos signos de linguagem mais generalizantes que há: os números Quanto mais o ser humano é designado por seu nome, mais humanamente é tratado. Chamar alguém de petista ou direitista, pode querer significar exclui-lo do debate, da vida social ou mesmo da vida, em momentos extremo. É preciso ter cautela democrática quanto a isso.
BRASIL 247 -- Você lembra, na página 48 de seu livro, que Carl Schmitt, principal jurista do nazismo, considerava eleições como uma forma de manipulação autoritária, sustentada pelo dinheiro privado. Seu regime ideal era um estado de exceção permanente, sob chefia de um líder acima de tudo e de todos. Estamos falando, também,   dos brasileiros que foram às ruas pedir impeachment e até golpe militar? 
SERRANO -- Hanna Arendt tem a melhor expressão, a meu ver, sobre esse fenômeno. Em As origens do Totalitarismo , livro onde busca descobrir o que serviu de base ao florescimento do nazismo na Alemanha, ela cunha o conceito de " ralé", que não deve ser entendido em sua acepção corrente de baixa extração social. Não é, para Arendt, um conceito econômico-social. Parece povo, nas não é. Povo, na democracia não é um mero aglomerado de pessoas, mas aproxima-se se aproxima do conceito de nação. A ralé se unifica por outra visão da vida e do mundo. Entende que a sociedade deve ser um todo pacificado, harmônico e unido. A união , a homogeneidade e a harmonia trariam a paz Por isso excluem a politica e suas disputas impuras e procuram  substitui-la  pela ordem , pelo poder da paz. Uma paz sem voz. Assim buscam uma liderança forte , de uma pessoa ou estamento social dotados, nesta visão da ralé, de autoridade e pureza. Assim eram vistos os militares em 64 e são vistos os promotores e juízes de hoje. A ralé foi a base social do nazi-fascismo, dos golpes militares de ontem e das medidas de exceção.
BRASIL 247 -- Como avaliar a atuação do Supremo Tribunal Federal nessa conjuntura política, em particular na Lava Jato?

SERRANO -- Difícil saber o que vai pela subjetividade humana , mas devo dizer que a decisão que permitiu a prisão de pessoas ,sem transito em julgado, me surpreendeu , pela intensa agressão à Constituição e ao Codigo de Processo Penal Me pareceu evidente a pressão da mídia e sua onda punitivista Não consigo ver outra explicação que não uma grande concessão ao discurso publicado e ao apelo da ralé, no sentido de Arendt
BRASIL 247 -- Você denuncia a "aplicação subvertida" das prisões preventivas, que passaram a ser empregadas para arrancar delações premiadas. Qual seu balanço da Lava Jato?
PEDRO SERRANO -- De parte positiva, por ter combatido a corrupção. Mas negativa também  porque o fez, usando de  métodos de exceção. O  problema não é a Lava Jato. É muito maior.  É um avanço, no mundo , de um punitivismo de exceção , que faz retroagir conquistas humanas de séculos. É a crença no direito penal como forma de conquista de uma ordem pacificadora. Expressa o  eterno retorno ao mito do poder extremo como criador da ordem e não do caos, que é seu resultado na verdade. Combater esse punitivismo é combater o fascismo em seus novos trajes.
BRASIL 247 --Por que foi tão difícil perceber que os regimes de exceção sempre estão ali, a espreita, como um animal que a qualquer momento pode ser sair da jaula?
SERRANO -- Há alguns anos se você perguntasse a um grande cientista político ou a um jornalista influente a diferença entre procurador de justiça e do estado ele não saberia responder. Até hoje, aliás, muitos ainda não sabem responder. Sem entender essas questões ninguém está habilitado a entender como se operam medidas de exceção no interior da democracia. Assim fica difícil enxergar o perigo quando se aproxima.
copiado  http://www.brasil247.com/pt/

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