A PJ e o SEF investigaram perto de 50 traficantes que exploraram mais de 200 estrangeiros em trabalhos agrícolas
Ion
Lizera viajou da Roménia para Portugal, em setembro de 2015, com o
marido e dois filhos menores. Tinham promessas de boas condições de
trabalho na apanha de fruta, pagamento de 30 euros por dia e alojamento
"digno". Quando chegaram ao destino, em Beja, juntamente com outros 12
romenos, o sonho começou a desmoronar-se. Ion e a sua família teriam que
dividir o quarto com 19 pessoas, cada uma com um colchão velho para
dormir, em cima de paletes de madeira, um pequeno espaço para guardar os
seus pertences dentro de um saco de plástico e apenas uma casa de banho
em toda a residência, onde estavam outros 40 compatriotas que tinham
vindo em busca de um pedaço de vida melhor. Raramente recebiam dinheiro,
sempre muito menos que o prometido, e ainda tinham que pagar
"comissões" avultadas ao gangue que o tinha contratado.
Nos
últimos três anos o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e a
Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da PJ investigaram cerca de
meia centena de suspeitos de tráfico de pessoas para trabalharem, em
condições muito próximas da escravatura, em explorações agrícolas um
pouco por todo o país. Foram identificadas mais de 200 vítimas.
Dos
casos investigados pelo SEF, com sentenças transitadas em julgado,
houve seis condenações com penas suspensas entre 3 e 5 anos de prisão (a
moldura pena deste crime vai de três a 10 anos de prisão). Do lado da
PJ, sem estes dados sistematizados a tempo de responder ao DN, há
conhecimento de apenas uma condenação a prisão efetiva de quatro anos,
num acórdão de 2014.
Ion foi umas das 50 vítimas de tráfico salva por uma das maiores
operações de sempre das autoridades portuguesas, cuja acusação foi
concluída no final do ano, com 26 arguidos (17 estão presos
preventivamente) por trafico de seres humanos e associação criminosa.
Dois deles, de nacionalidade romena, estavam em fuga, mas foram em
dezembro capturados pela UNCT, um na Suécia, outro na Bulgária. Ion até
teve sorte por estar com a família, pois as mulheres que vieram sozinhas
foram obrigadas a prostituir-se.
"Este
grupo de indivíduos recorria a ameaças físicas e psicológicas, tanto
aos trabalhadores que se encontram em Portugal como aos seus familiares
residentes na Roménia, para que os primeiros se sentissem a viver
permanentemente num clima de medo e terror, procurando assim evitar
aquilo que seria a normal contestação dos trabalhadores que vieram para
Portugal para trabalhar em determinadas condições que lhe foram
prometidas no País de origem e quando aqui chegados se vêm confrontados
com outro tipo de situação que não aquela que esperavam,
transformando-se rapidamente que quase escravos de uma organização que
não olha a meios para atingir os seus fins", escreveu na acusação a
procuradora Felismina Carvalho Franco, da 4ª secção do Departamento de
Investigação e Ação Penal (DIAP), titular do inquérito.
Entre
os 26 arguidos estava um português, advogado, responsável pela criação
das empresas de recrutamento, a que recorriam os proprietários
agrícolas. Criou empresas com nomes inspirados como "Fábula Divinal",
"Pilar Fiel" ou "Etnifenómeno" e movimentava as contas bancárias a
pedido do grupo criminoso.
Para já as
autoridades ainda estão a dar o benefício da dúvida aos proprietários,
que têm alegado desconhecer a situação dos seus trabalhadores
estrangeiros e até, algumas vezes, levavam-lhes comida porque se
apercebiam que estavam famintos. "Os proprietários contratam as empresas
para prestar esse serviço e têm dito que desconheciam a situação dos
trabalhadores. No entanto, tenho em conta que este é um crime que tem
tido alguma divulgação através das investigações policiais, começa a
perder espaço o argumento do desconhecimento", diz ao DN um investigador
da PJ que tem trabalhado nestes casos. E não poderá ser de outra
maneira, pois Portugal foi um dos 10 países da União Europeia (UE) que
transpôs a diretiva de criminalização dos "utilizadores de serviços" das
vítimas de tráfico de seres humanos, podendo ser incluídos os donos das
explorações. Em novembro passado o Ministério Público já acusou um
proprietário que
explorou 23 nepaleses.
Segundo
o SEF, este fenómeno está espalhado por "diversas regiões do país, como
Trás-os-Montes, Santarém, Alentejo em função da sazonalidade de várias
culturas agrícolas como a apanha da castanha, da azeitona, ou frutos
vermelhos". As vítimas têm maioritariamente nacionalidade romena,
nepalesa e búlgara, havendo casos pontuais outras nacionalidades. Os
exploradores têm, de acordo ainda com o SEF, nacionalidade romena,
nepalesa e portuguesa.
Notando uma
tendência de crescimento para este tipo de criminalidade - a ONU também
já alertou para este aumento - que aproveita a livre circulação na UE
para explorar os mais pobres e vulneráveis, o SEF tem definida uma
estratégia que assenta em três pilares: "Prevenção, estando atento aos
diversos indicadores associados ao fenómeno do Tráfico de Seres Humanos,
a fim de recolher, analisar e difundir informação que permita eventuais
investigações pró-ativas, ou agir reativamente em função de contextos
constatados; Proteção, no sentido de garantir todo o apoio necessário às
eventuais vítimas de TSH, assegurando o acolhimento e acompanhamento
das mesmas; Investigação, a fim de proceder criminalmente contra
traficantes e redes organizadas envolvidas neste tipo de crime".
copiado www.dn.pt/portugal
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