Uma mulher de 25 anos
de idade definida por pessoas próximas como "doce, mas com opiniões e
certezas", "realmente determinada" e que "não se dobrava fácil" morreu
há exatamente 30 anos. Renata Câmara Agondi, nadadora premiada no Brasil
e também internacionalmente, tentava concluir a travessia do Canal da
Mancha, entre a Inglaterra e a França, quando teve uma parada cardíaca
causada por hipotermia e fadiga após dez horas de nado.
Foram 42
mil braçadas que não chegaram a lugar algum por uma série de razões. Há
versões que falam em treinamento insuficiente, preconceito por ser uma
atleta brasileira e o comprovado despreparo das pessoas que estavam no
barco de apoio e acabaram condenadas a seis meses de prisão por um erro
de rota. Também há uma interpretação comum a quase todas as pessoas
envolvidas de certo modo no caso e ouvidas pelo UOL Esporte: Renata queria completar a travessia, se sentia capaz e não desistiria. Ela preferiu a morte à derrota.
Criaram as competições de maratona aquática
oficialmente mais ou menos na nossa época, então viajamos pelo Brasil.
Como éramos os dois que mais se destacavam fomos os primeiros a ir para o
exterior. A gente juntava um dinheirinho aqui, juntava ali, às vezes
dormia no mesmo quarto para sair mais barato, mas competíamos. Foram uns
seis ou sete anos assim. Eu estava com ela até uma semana antes do
embarque para o Canal da Mancha. As taxas eram caras, ela só foi porque
arrumou um patrocinador. Eu segui no circuito pela Europa
Renata
Agondi era uma nadadora experiente e premiada no Brasil quando decidiu
cruzar o Canal da Mancha. Ela já competia no mar desde 1983, quando foi
vice-campeã de uma travessia entre a Praia das Astúrias e da Enseada, no
Guarujá. Foi uma prova de 3,5km que provou uma das características que
mais rendia elogios nas provas de piscina: a resistência. Em 1987 ela se
aventurou pela primeira vez fora do país, na travessia entre as cidades
de Capri e Nápoles, na Itália. Renata terminou em sexto lugar geral e
terceiro entre mulheres. Na primeira prova! Estava claro: fazer carreira
em maratonas, provas de águas abertas, era seu caminho.
Ao fim
daquele ano foi descoberta pelos nadadores brasileiros a existência de
um circuito mundial deste esporte. A chance de Renata Agondi fazer
história pelo país era tão real que ela conseguiu um patrocinador para
custear toda a preparação e torneio, além da travessia do Canal da
Mancha - até então só dois brasileiros haviam conseguido. Com maiô e
touca escrito Credicard, a nadadora chegou à Europa no dia 5 de julho de
1988 para uma série de competições menores antes do grande desafio.
Renata
foi acompanhada nesta viagem por Judith Russo, uma amiga que circulava
no meio do esporte em Santos e foi uma espécie de treinadora nestas
travessias, com a responsabilidade de dar instruções e organizar
reposições energéticas, principalmente. Em 20 de agosto, Renata fez uma
brincadeira com a técnica: escreveu um cartão postal em Dover, proibiu
Judith de ler e enviou ao Brasil. Os dizeres eram os seguintes:
"Obrigada pela força. A conquista foi nossa. Esta viagem certamente
entrará em nossas vidas. Beijos, Renata."
Não houve exatamente uma conquista.
Quem dá direção ao nadador é o barco
Renata Agondi partiu de Shakespeare Beach, na Inglaterra, às 8h22 do dia 23 de agosto de 1988.
Ao
iniciar a travessia do Canal da Mancha ela fazia 80 movimentos de braço
por minuto e depois de uma hora seguia no mesmo ritmo, o que é
considerado um ótimo desempenho em maratonas aquáticas. O início de
prova foi elogiado: metade do percurso percorrido em menos de cinco
horas. O problema foi o que aconteceu depois. Nas quatro horas
seguintes, a brasileira não nadou mais do que 5km. Renata estava nadando
em uma rota errada.
"O mar começou a ficar mais revolto e começou
o tráfego de navios. Às vezes o barco tinha que parar um pouco por
causa da vinda dos navios, mas o piloto não continuou a acompanhar
Renata como deveria. Adiantava o barco e Renata ficava para trás. Ele
parava, a Renata passava e ele acelerava. Eu pedia a ele: não faça isso,
pois cansa o nadador, tem que ser ao lado", disse Judith Russo em
depoimento ao livro "Revolution 9".
Se o barco está à frente, o
nadador força o pescoço para avistá-lo. Se o barco está atrás, o nadador
está sem direção. Quem dá direção ao nadador em uma prova assim é o
barco.
O
barco Hilda May não acompanhava direito Renata Agondi, a ponto de quase
atingi-la. Após quase 11 horas ela ainda estava longe da terra e
nadando em vão. O clima no barco estava tenso, repleto de impasses e
discussões. Em algum momento os tripulantes concluíram que era difícil
retomar a rota original e deviam cancelar a travessia. Eles aproximaram o
barco da nadadora e jogaram a boia no mar - nas provas, agarrar a boia
significa desistência, e encostar no barco representa desclassificação.
Renata viu a boia.
Em razão do tempo e da boa performance, Renata
acreditou que estava perto da costa. Há quem diga que ela já podia ver a
terra naquele momento. "Ela viu a boia e perguntou: "por quê?" Ela
olhou para mim, aqueles olhos como que implorando: "por quê você quer me
tirar? Por quê? Por quê?". Eu disse: Renata, não dá mais", relembra
Judith.
Renata não cumpriu a ordem. Aumentou o ritmo das braçadas
demonstrando indignação e tentando se afastar do barco para não tocá-lo.
"Naquele instante ela quis se desvincular das orientações erradas e
chegar à costa. Mas quando ela quis dar o sprint final ela sentiu o mal estar fatal", conta Marcelo Teixeira.
Um dia quem sabe haja uma explicação de
porque a Renata foi tão cedo. A dúvida permanece. Capacidade para fazer
aquela travessia ela tinha, não era uma aventureira. Aliás, o que eu não
queria nunca que passasse é a imagem de que ela era uma aventureira,
que foi nadar sem competência. "Mas ela fez isso", "mas ela" o caramba.
Ela sabia o que fazia, era bem treinada, não se arriscaria no sentido de
uma aventura
Tereza Cristina Tesser, Amiga de Renata Agondi
O
barco Hilda May fez contato com a guarda costeira às 18h01 para
informar que Renata estava em perigo. O fiscal Lewis a resgatou do mar e
um helicóptero foi buscá-la. Antes da chegada ao hospital na França, a
brasileira morreu. "Síndrome de esgotamento" foi a causa, de acordo com
os primeiros boletins. Não houve afogamento. Renata Agondi teve uma
parada cardíaca causada por hipotermia e fadiga. Era a quarta morte de
um atleta no Canal da Mancha em toda a história.
O corpo de Renata
Câmara Agondi chegou ao Brasil às 7h do dia 2 de setembro de 1988. Os
patrocinadores e a Universidade Santa Cecília, onde ela treinava em
Santos, se encarregaram dos custos. Uma multidão de pessoas acompanhou o
velório na sede da faculdade e depois o enterro. Em sua lápide foi
escrito: "Brilha no céu uma estrela do mar".
Judith Russo
Judith
Russo, durante meses, foi considerada a única responsável pela morte de
Renata Agondi. Ela foi enquadrada no artigo 63 do Código Penal francês
por negligenciar assistência à pessoa em perigo e foi presa na sequência
da prova. A Credicard, patrocinadora da atleta, pagou fiança de 500 mil
francos, e a treinadora voltou ao Brasil.
Morte de Renata desencadeou mudanças no esporte
A
trágica morte de Renata Agondi desencadeou mudanças importantes em
relação à segurança das maratonas aquáticas. Anteriormente apenas o
treinador tinha direito de interromper a prova, mas o piloto do barco de
apoio também passou a ter essa possibilidade depois de tudo o que
aconteceu. Os próprios técnicos, aliás, passaram a ser mais
profissionais: antes era comum que os atletas levassem meros
acompanhantes, amigos que queriam viajar à Europa e aproveitavam a
ocasião.
O treinamento e preparação dos barqueiros também está em
outro nível. Atualmente é preciso reservar um barco para a travessia
cerca de dois anos antes da viagem, o que evita improvisos e imprevistos
como no caso de 30 anos atrás. São poucos barcos autorizados, todos
preparados e equipados. Renata, por exemplo, não fez reserva alguma:
conseguiu um patrocinador pouco antes e por isso embarcou para tentar o
Canal da Mancha.
Há muito mais informações, e mesmo assim as
mortes não cessaram. Depois da brasileira houve mais seis tragédias na
travessia, sendo a última em 2017.
Renata Agondi dá nome à
primeira etapa da Copa do Mundo de maratona aquática e duas ruas, uma em
Santos (no bairro Saboó) e outra em São Paulo (Itaim Paulista).
Voz da natação nos anos 80
Antes
mesmo de morrer, Renata já vinha atuando como incentivadora de mudanças
estruturais no esporte. Ela trabalhou na Secretaria Municipal de
Esportes de Santos (Semes), desenvolveu trabalhos na área de comunicação
e organização de dados de esportistas da cidade e fez parte do comitê
que fortaleceu os Jogos Abertos do Interior na época. Ativista, ela
virou uma voz da natação a partir do momento em que passou a conquistar
resultados expressivos.
"O atleta é um joguete nas mãos dos
outros e acaba estragando sua carreira" e "A melhor forma de derrubar
tudo isso é nadar e obter bons resultados, porque assim você é
considerado credenciado para falar e surgem algumas brechas para a gente
mandar ver" são frases ditas por ela a jornais locais em 1986.
Formada
em relações públicas, ela também era ativa em movimentos estudantis, no
hippieismo, no feminismo e até na formação de partido político. Boa
parte de suas posições eram expressas em um diário que escreveu desde os
oito anos de idade e que tinha até nome: "Revolution 9", nome de uma
música do Álbum Branco dos Beatles, em 1968.
Revolution 9: frases do diário de Renata Agondi
Acho
que não dá pra gente aprender sem sofrer. Quando estamos sofrendo,
estamos aprendendo algo que será difícil esquecer. Estou com medo de que
minha vida se torne apenas uma passagem, mais nada. Gostaria de
aprender e ensinar, não teoricamente, virar um profeta ou algo parecido.
Mas que as pessoas aprendessem comigo através do que sou, o que faço, o
que sinto, porque sou assim
A
família de Renata Agondi ainda tem muito desconforto para falar sobre o
assunto, especialmente em datas próximas ao dia específico de sua
morte. Ela tem pai e mãe vivos, Raul e Lucrécia, e quatro irmãos,
Rosana, Raul, Rodolfo e Roberto. Periodicamente eles recebem homenagens,
mas costumam falar sobre o legado, e não sobre as causas e
consequências da fatalidade. O assunto segue como um tabu. E também
segue nebuloso. As lágrimas mostram tristeza pelo adeus precoce de uma
promessa do esporte e também dúvidas sobre o que poderia ter sido feito
de diferente para evitar esta morte.
"Por quê?", perguntou a
nadadora após ver uma boia atirada em sua direção para que desistisse da
travessia do Canal da Mancha. Depois de 30 anos ninguém respondeu sua
pergunta.
É
interessante o destino. Dizem que é fácil colocar a culpa no destino.
Acredito que posso fazer o meu caminho, trocá-lo, mas eu vou ter que
passar por certas coisas que estão escritas no destino, que não dá pra
fugir. Entende? Podem acontecer mil coisas comigo que acontecerão por
minha causa, porque eu quis. Mas tem coisas que sem eu querer vou
passar, está escrito por Deus
Em 10 de junho de 1984
"Raio de sol": como amigos souberam da morte; assista
https://www.uol/esporte/especiais/renata-agondi.htm#sucessao-de-erros
Sucessão de erros
copiado https://www.uol/esporte/especiais/renata-agondi.htm#sucessao-de-erros
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