Ficção política
Marcelo num país tropical e bendito
Marcelo num país tropical e bendito
FICÇÃO
POLÍTICA. Marcelo foi ao Maracanã disposto a fazer propaganda sobre o
jeitinho português em ajudar a fazer nações... Não precisou de falar, o
Brasil falou por ele, por nós, por essa coisa maravilhosa que é um país
orgulhoso de ser mundo
As notícias
da pátria eram as costumeiras. Grandes manchetes, pequenos e miseráveis
pecados. Seria capaz um governante, para mais encarregado dos impostos,
ser impostor a ponto de aceitar viajar à custa de hipotético corruptor?
Questão vã, conhecendo-se o interminável do nosso investigar, que,
terminado, dá em nada. Por isso, aliás, se discutia o que se discutia. O
assunto era sempre o sexo dos anjos, por desfastio da opinião pública,
falta de vergonha dos jornalistas - jornais criticarem viagens à
borla... - e chicana dos partidos.
Para
estes últimos, as indignações eram armas de arremesso, e só. O que os
impossibilitava de perceber a pequenina falta de carácter que era,
afinal, do que se estava a falar. Trinta deputados faltaram ao plenário,
numa quarta-feira de 2003, porque viajaram a Sevilha, a convite, para
uma final europeia de clubes. No regresso, justificaram a falta, assim:
"Trabalho parlamentar."
Muitos
anos depois, na esteira de muitos anos antes, discutia-se, pois, o que
nunca se poderia provar, o interesse da Galp (ou outra) em obter grandes
favores da sua pequena generosidade. Quando a questão era mais radical:
nessas andanças, nunca os políticos repararam - beneficiados sem
justificação de serviço prestado - no desprezo, à volta, dos que tiveram
de pagar para viajar?
Era essa a
conversa tida pelo Presidente Marcelo e o embaixador português em
Brasília, Ribeiro Telles. Estavam na tribuna do Maracanã, no Rio de
Janeiro, e aguardavam a abertura dos JO. O diplomata deixou que o tema
das viagens pagas se prolongasse mas antes do começo da cerimónia quis
tirar a limpo uma dúvida. Marcelo ainda recebia telefonemas de Portugal
e, no fim de um deles, o embaixador arriscou: "Sempre é verdade,
Presidente, que durante o desfile das delegações vai aproveitar para
sublinhar a unidade grandiosa do Brasil?"
Marcelo
estava inclinado a espreitar o estádio e regressou ao espaldar azul da
cadeira. O embaixador desculpou-se: "Li isso num jornal de Lisboa..."
Marcelo respondeu: "Eu gostava de gabar o mérito português em ajudar a
fazer nações... Acha mal que eu lembre isso aos nossos vizinhos?" E
deitou uma olhadela à volta, pelos outros chefes de Estado.
O
que aconteceu depois pode ter modificado as intenções de Marcelo. Quem
acendeu a pira olímpica foi o antigo maratonista Vanderlei de Lima. Em
2004, em Atenas, ia ele à frente, quando lhe saltou ao caminho um
traficante das favelas, que por acaso era um padre irlandês com ânsia de
fama. Agarrado, assustado, Vanderlei, quando se soltou, já tinha o
coração descompensado, perdeu a dianteira, acabou em terceiro.
Acontecera ali, no berço da civilização europeia.
Uma
dúzia de anos depois, da bancada dos jornalistas, no Maracanã, Sarah
Lyall, a enviada do The New York Times, escrevia as primeiras
impressões: "As notícias do Rio sugeriam que seríamos atacados por
assaltantes, traficantes, sequestradores, mosquitos e pedaços de esgoto.
Até agora nada." Ao Presidente português a quem aconteceu ter estendido
a mão a cariocas excêntricos, também não acontecera nada. Podia ter
acontecido? Podia, o Rio é uma cidade perigosa. Mas o facto é que não
aconteceu e isso, tomando por boas as informações histéricas sobre os JO
no Rio, até parecia espantoso.
No Rio,
frente à televisão, o cronista Arnaldo Jabor escrevia: "Eu chorei sem
parar. Foi a melhor abertura que eu já vi na minha vida. Extraordinária.
Não só pela espantosa qualidade, pela beleza, pelo apuro técnico, foi
um recado para o mundo. Hoje é um dia importante para nossa vida
política, inclusive. Esse país maravilhoso tem de sair da mão de quem o
transforma numa coisa lastimável. O verdadeiro Brasil é esse que
apareceu hoje."
Foi também o que o
Presidente português viu e ouviu. O Paulinho da Viola a cantar um hino
numa língua maravilhosa. O encontro de povos, onde os portugueses
estavam no adequado lugar, de irmãos - foi bom o flash da calçada
portuguesa e o fugaz do trinado da guitarra, quando se sabe que muito
mais foi. "Que orgulho", deveriam dizer os portugueses, como Jabor
chorou. Marcelo virou-se para o embaixador e disse: "Não vou dizer nada
sobre o Brasil português, ficou tudo dito."
No
fim, soube-se que a cada um dos 11 mil atletas foi dada uma muda de
árvore para ser plantada no Parque dos Atletas, na Barra da Tijuca.
Marcelo não resistiu. Bateu no ombro de um vizinho - calhou ser o
presidente do Paraguai, Horacio Cartes. Disse-lhe: "Sabe que o Jardim
Botânico do Rio foi fundado pelo rei português João VI, em 1808?" E
mais: "Sabia que o primeiro imperador do Brasil, Pedro I, nasceu em
Queluz, pertinho donde eu moro? Nasceu português e apaixonou-se por nova
terra, acontece-nos muito."
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