“O que aconteceu??”, espanta-se o jovem Inquisidor”. Quem será?
Marcelo Auler
Pela segunda vez nessa semana reproduzo neste espaço um texto do meu amigo Marcio Tavares D’Amaral. No domingo (18/09), reproduzi uma verdadeira aula, distribuída por ele ao grupo de amigos do qual faço parte. Como bom mestre que é, na postagem – Didaticamente, em sete itens, a explicação sobre o golpe do impeachment – demonstrou porque o impeachment de Dilma Roussef é considerado um golpe, apesar dos “coxinhas” e dos usurpadores do poder não quererem admiti-lo como tal.Professor emérito de História da Filosofia na UFRJ, D’Amaral, na coluna deste sábado (24/09) em O Globo, onde escreve semanalmente, foi buscar nos filósofos da era AC a tentativa de explicar o grande dilema entre prova e convicção, criado recentemente.
Ele se superou no artigo de hoje. Lembra-me do período da Ditadura Militar quando, por conta da censura, tentávamos passar as informações sem dize-las diretamente. Aqui, D’Amaral foi, ao mesmo tempo, didático, crítico, sarcástico e ainda por cima, irônico. Não há como não admirar este texto que é revelador, sem revelar. Não preciso me aprofundar, o texto de D’Amaral, fala por si.
Apenas lanço no ar uma pergunta: “quem será o “jovem inquisidor” a que ele se refere? (respostas podem ser dadas nos comentários abaixo)
Prova e convicção
Márcio Tavares D’Amaral (*)
Um farol apagado é ou não um farol? É a luz que faz o farol ou é o farol que faz a luz?
Problema tremendo da filosofia, há mais de dois milênios, é
distinguir o que parece, mas não é, do que é mesmo, de verdade. Devia
ser óbvio: se é, é; se não é, pode parecer à vontade, mas, sinto muito,
não é. Pronto. — Só que não. Um farol apagado é ou não um farol? É a luz
que faz o farol ou é o farol que faz a luz? O que é que faz a maré
alta? A água que avança sobre a praia ou a praia que encolhe sob as
águas? As duas? Enquanto não se souber isso, não se sabe nada. A verdade
fica em suspenso, perdida nas aparências. Pode-se pensar que essa é uma
daquelas questões que só interessam aos filósofos, dessas
incompreensíveis, meio tolas, nada a ver. Mas não. É talvez a questão
que mais diretamente diz respeito à vida. Não à Vida, assim, com
maiúscula, coisa metafísica. À vida mesmo, às nossas vidas. No mais
miúdo delas. Esse problema de ser ou parecer é do nosso cotidiano. Às
vezes a gente não vê. Mas está lá.
Os sofistas do século V a.C. não concordaram com isso. Só há aparências, disseram. Nada de verdade. Só discurso. Fala-se não para provar, mas para convencer. Produzir convicções. Sem provas. (Eu sei, o jovem Inquisidor não disse a frase assim, nessa forma brilhantemente lapidar. Mas esse é o sentido, e como um sofista o invejaria!)
Os filósofos de carteirinha, Sócrates, Platão e Aristóteles à frente, revoltaram-se, no século IV, com essa barbaridade. Os sofistas, francamente, tinham exagerado. Contra eles, esses grandes filósofos foram os primeiros procuradores. Buscaram a verdade soterrada sob as aparências. Se as aparências enganam, a verdade precisa de quem a defenda dos entulhos. Os grandes filósofos foram também os primeiros advogados. E eram eles que decidiam quando a verdade finalmente aparecia de dentro da impureza das aparências. Lavavam-na, faziam-na luzir, iluminavam-na. Também foram, portanto, os primeiros juízes. Procuradores, advogados e juízes, tudo por amor à verdade. — Com essa altíssima origem, a ética filosófica devia ser prova obrigatória no exame da OAB.
Pois, no direito, a coisa se passa assim: dá-se um fato; ele vem envolto numa multidão de aparências e pistas, boas e más; é preciso discernir umas das outras; as boas viram prova; a verdade é encontrada: parecia uma coisa, foi-se ver, não era, e fez-se a luz. Fim do processo. A vida pacificada pela verdade, o mundo equilibrado pela justiça.
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Por exemplo: fulano é ou não é dono de uns imóveis? Pergunta bem simples, só devia admitir um sim ou um não. Mas o jovem Inquisidor encarregado de respondê-la não sabe. E diz: “Parece”. Um filósofo tem a obrigação de perguntar: “Parece ou é?” — “Não tenho prova”, admite o jovem Inquisidor. — “Nada?” — “Nada cabal. Evidência, mesmo, não. Mas que parece, parece”.Tem bem uns dois mil e quatrocentos anos que isso não basta. A angústia da filosofia foi, ainda é, justamente lidar com as aparências. Desencavar o ser de dentro do parecer. Porque, disseram lá atrás, as aparências enganam. E, no engano, a verdade desanda. A verdade ou é ou não é. Não tem negociação.
Os sofistas do século V a.C. não concordaram com isso. Só há aparências, disseram. Nada de verdade. Só discurso. Fala-se não para provar, mas para convencer. Produzir convicções. Sem provas. (Eu sei, o jovem Inquisidor não disse a frase assim, nessa forma brilhantemente lapidar. Mas esse é o sentido, e como um sofista o invejaria!)
Os filósofos de carteirinha, Sócrates, Platão e Aristóteles à frente, revoltaram-se, no século IV, com essa barbaridade. Os sofistas, francamente, tinham exagerado. Contra eles, esses grandes filósofos foram os primeiros procuradores. Buscaram a verdade soterrada sob as aparências. Se as aparências enganam, a verdade precisa de quem a defenda dos entulhos. Os grandes filósofos foram também os primeiros advogados. E eram eles que decidiam quando a verdade finalmente aparecia de dentro da impureza das aparências. Lavavam-na, faziam-na luzir, iluminavam-na. Também foram, portanto, os primeiros juízes. Procuradores, advogados e juízes, tudo por amor à verdade. — Com essa altíssima origem, a ética filosófica devia ser prova obrigatória no exame da OAB.
Pois, no direito, a coisa se passa assim: dá-se um fato; ele vem envolto numa multidão de aparências e pistas, boas e más; é preciso discernir umas das outras; as boas viram prova; a verdade é encontrada: parecia uma coisa, foi-se ver, não era, e fez-se a luz. Fim do processo. A vida pacificada pela verdade, o mundo equilibrado pela justiça.
Mas também pode ser assim: parece haver um fato; ele vem envolto numa multidão de aparências; na impossibilidade de discernir as boas das más, acrescentam-se outras (na esperança de que, somando mais, se encontre algo); não se consegue achar a boa prova; mas o processo precisa fechar; e se fecha ‘por convicção’. Não apareceu a tal demonstração cabal. “Mas parece ser”. (Isso é uma simples convicção.) “Então só pode ser.” (Já isso é um grande chute, um desejo extrajurídico.) “Logo, é. E isso, finalmente, é péssima lógica. Esse ‘logo’ entrou no raciocínio menos naturalmente do que Pilatos no Credo.Mas fechou o processo. Podemos voltar para o mundo e a vida, tudo lavado e limpo, expeditamente, a jato. — Qual o quê! O mundo está de cabeça para baixo, e a vida ferve de raiva.
“O que aconteceu??”, espanta-se o jovem Inquisidor. — Aconteceu que, por falta da prova de filosofia no exame da OAB, o sofista venceu. O filósofo, procurador da verdade, não foi chamado aos autos. Mal procurada sob os escombros das aparências, a verdade ficou uma ferida aberta. “Será? Não será? Pode ser.” — “Pode ser” não vale. Convicção não serve.O pobre filósofo precisa de evidências. Cabais. Probatórias. Ou não pode julgar. E a verdade não vai aparecer. “Eu creio que…” “Tenho certeza de…” “Está na cara que…”. Essas certezas subjetivas não colam. São inúteis. Pior, são perigosas. A verdade pode naufragar nelas, a justiça pode morrer delas. O processo não pode fechar assim. A verdade sofre.
Chamem depressa um filósofo. A coisa está feia. O tempo esquentou. O fervor das convicções se arroga direitos de verdade. Provas? Não há. Nem precisa. Chamem depressa um filósofo! Nem carece ser dos grandes. Mas tem que ser logo. Agora. A jato.(*) Marcio Tavares d’Amaral – é professor Emérito da UFRJ (História da Filosofia), escritor e colunista semanal do jornal O Globo. O texto acima foi publicado na edição de O Globo deste sábado, 24/09.
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