Valter Hugo Mãe: "O politicamente correto lixou-nos a todos"
Valter Hugo Mãe tem
orgulho no percurso, mas nunca puxa dos galões. Nem se refugia nas
meias-tintas das meias-palavras. Foge, como de uma praga, do
"politicamente correto". Ainda bem.
Podemos começar por Henrique de Carvalho, Angola, onde nasceu?
Sim,
apesar de eu ter saído de lá com dois anos e meio. Logo, não tenho
nenhuma memória direta, mas foi um lugar que eu construí a partir das
histórias dos meus pais. Tive a possibilidade de lá voltar, há cerca de
três anos, e pude perceber que algumas das coisas que me foram contadas
não tinham que ver com a cidade - eles correram várias terras, tiveram
vários filhos e misturaram as suas próprias memórias... Mas não deixa de
ser uma forma rica de ter passado, porque me dá a liberdade de escolher
aquilo que quero tomar para mim. Em última análise, eu posso quase
inventar o lugar onde nasci e aproveitar apenas aquilo que acho
esplendoroso e maravilhoso, criar quase um lugar de fantasia...
Tendo regressado lá, como foi o encontro com a realidade?
Uma
mescla tipicamente africana: algo francamente triste e
surpreendentemente alegre. O que ali existe é uma pobreza profunda de
quase toda a gente mas, de modo estranho, uma alegria, uma candura, na
forma como as pessoas são. A nós, até nos custa a entender... Se nos
falha a mínima coisa, entramos logo em colapso. A eles, a quem falha
quase tudo, parece que essa simplificação das necessidades acaba por
trazer ao de cimo uma alegria elementar. Isso comoveu--me muito, o
encontrar ali pessoas muito crédulas, muito disponíveis, inclusivamente
com uma vontade enorme de falar e de ouvir. Depois, como não há
visitantes, não há turismo, eles quase celebram com quem lá passa.
Atrevo-me a pensar que o contacto comigo foi, para alguns deles, a
viagem que não podem fazer...
Essa disponibilidade de que falou é mais difícil de descobrir na Europa?
Sim.
Não vejo nada de parecido na Europa... Há uma festividade de alguns
países e regiões latinas, caso do Sul de Espanha, ou em zonas da
Alemanha, ou na Islândia, onde se perde literalmente a cabeça ao fim de
semana, mas parece-me mais uma alegria agendada, calendarizada. Parece
resultado de psicanálise (risos)... A África, podendo ser vista como o
continente atrasado, também se arrisca a ser o espaço mais preservado,
se pensarmos nalgumas essências do que é ser-se gente.
De Henrique de Carvalho e de Angola para Paços de Ferreira, onde vive a sua infância...
As
minhas memórias, ai, são profundas. É lá que começa e acaba a minha
infância, de uma forma muito nítida. Por exemplo, a perda daquele espaço
quando saí, a perda dos meus amigos, a entrada num ambiente
completamente diferente como o das Caxinas, ainda hoje atingidas por um
enorme preconceito que se move contra a suposta agressividade de quem lá
vive, essa fratura foi muito violenta. Sobretudo porque eu era um miúdo
ingénuo, frágil, magricela, mariquinhas, cheio de medos e que estava a
entrar num lugar em que me diziam que as pessoas eram muito ferozes...
Eu quase sentia que tinha mudado para o lugar da minha morte... Mas,
voltando a Paços, fiquei com a ideia de uma terra muito recatada,
pequenina, de interior, cheia de pudores... Aqui [Caxinas, Vila do
Conde], tudo é diferente, com a praia, há sempre um banhista, um
turista... As férias permitem às pessoas ser mais "irregulares"... Em
Paços de Ferreira, a "regularidade" era fundamental. O ambiente era de
uma certa austeridade e eu era um miúdo criado naquela mundividência bem
comportadinha e linear. Aqui, tudo foi diferente: desde logo, nos
primeiros verões que aqui passei, percebi que era possível as namoradas
aparecerem-me à porta, talvez porque as estrangeiras aparecessem com
umas ideias inovadoras. Os miúdos, as pessoas daqui, são um pouco
tomados de assalto com o entusiasmo de quem vem de fora e quer passar um
bom tempo. Isso, em Paços, não existia porque não havia visitas...
O ambiente das Caxinas obrigou-o a crescer?
Sim...
Sobretudo pelo preconceito - hoje uma das minhas causas é ser escritor
das Caxinas, mais do que de Vila do Conde... Esta comunidade foi e é
muito injustiçada, porque as pessoas das Caxinas não fazem mais do que
um tremendo esforço pela sobrevivência. É um lugar penalizado e eu não
tenho senão orgulho... O medo que se instigava, sobretudo na década de
1980, quando aqui cheguei, era de tal forma profundo que fazia pensar
que qualquer hipótese de envelhecimento aqui era inviável para um
forasteiro. Tenho pena que se tenha passado essa imagem e que as
Caxinas, que nem freguesia são, mas mais um bairro grande, continuem a
ser preteridas face a outras zonas da cidade. É um espaço negligenciado,
em que as coisas não são tão bonitas e em que há até uma permissividade
notória do ponto de vista urbanístico... É isso que vou tentando
denunciar, para que as pessoas das Caxinas, mesmo sendo mais simples,
não acabem destituídas da sua dignidade.
Costuma olhar-se o momento do liceu, do ensino secundário, como decisivo. O Valter viveu-o já nas Caxinas?
É
nas Caxinas que eu passo a saber quem sou. Há muitos aspetos da minha
infância que eu procuro curar até hoje, e aí entra Paços de Ferreira,
mas é nas Caxinas que eu me modelo e faço as escolhas do que quero. Foi
um processo lento: talvez por ter nascido em África, tomei o meu
tempo... Não me precipito e as coisas acabam por me acontecer. Mas foi
nas Caxinas, por volta dos 18, 19 anos, que eu perdi o medo dos textos e
passei a encará-los como um diálogo com um leitor qualquer. Desde os 6
anos que guardava os meus papelinhos, as minhas frases, mas só por volta
dos 18, e por influência de uma grande amiga, passei a considerar o
texto uma forma de estar com os outros. Já não era aquela coisa
solitária, nem uma maneira de me tolerar a mim mesmo... Isso passou,
naturalmente, com o que vivi e aprendi aqui.
Esse processo de aproximação ao texto acontece num ambiente que não é propriamente um cenário literário, pois não?
É,
é... É muito. É verdade que há escritores cuja literatura se desenvolve
dentro da biblioteca, por contaminação ou por influência de outros
livros, mas a minha tem outro tipo de génese, vem da espontaneidade das
pessoas, de uma manifestação humana sem filtro. Nesse aspeto, as Caxinas
reúnem pessoas genuínas, frontais... Acho que isso me mudou, de um
miúdo muito tímido para alguém que, se calhar, continua a ser tímido ou
reservado, que compreendeu a fortuna dessa frontalidade e a necessidade
de se criar um discurso e boa-fé, que não vá apenas ao encontro do
politicamente correto, algo que nos lixou a todos... Agora estamos a
pagar isso com o aparecimento de políticos muito "incorretos", talvez
por não ter havido moderação nessa "plasticidade". Aqueles que detêm
publicamente o poder da palavra entraram numa cosmética tão vazia, tão
retórica, que hoje em dia as pessoas não se conseguem identificar com
nada disso... Aquilo que me encorajou, aqui nas Caxinas, tem que ver com
uma espécie de vida em protesto...
Com esse processo da escrita já em marcha, o que o leva à Faculdade de Direito?
Era
um complemento, a busca da arma de que eu precisava para exercer essa
frontalidade... Eu queria muito dotar-me do necessário para poder
protestar consistentemente, argumentar com o juiz, de alguma forma
fundamentar aquilo que já ia pressentindo - os desequilíbrios, as faltas
de partilha, as desigualdades... Estudar Direito foi importante para
mim, até porque, sem que eu estivesse imediatamente consciente disso, o
curso de Direito estuda o discurso, o texto - se o desligarmos da
componente ética e o encararmos como uma oficina técnica, é algo que se
debruça sobre o escrever e o ler, como interpretamos o que escreveu o
legislador, qual a sua intenção, qual o lastro que carrega um texto...
Talvez seja mesmo a melhor das escolas para quem quer escrever livros...
Mas consegue olhar para um texto jurídico como se fosse um texto literário?
Alguns
são maravilhosos... Há uma secura no texto jurídico - que não deve ter
adjetivos, deve despir-se de emoções - que não deixa de ter uma
elegância própria. Há uma espécie de esplendorosa exposição de uma ideia
que se visa capturar com o mínimo possível de subjetividade.
Teoricamente, nós não devíamos ter dúvidas a interpretar uma lei. Claro
que, como estamos a falar de bichos que não se deixam caçar, haverá
sempre quem queira puxar a brasa à sua sardinha... Eventualmente, haverá
quem olhe anos a fio para o Código Civil e não descubra nada; mas, se
for da sua natureza intuir ali a presença da literatura, pode ser uma
mais-valia.
Chegou a exercer o Direito?
Sim,
fiz o estágio completo e fui, durante ano e meio, advogado estagiário.
Defendi vários processos em que era designado oficiosamente pela Ordem
dos Advogados. Quase só tive casos de senhoras em divórcio. Aliás, só
defendi as senhoras...
O que pode ter sido uma fonte de inspiração...
Foi,
de facto. Acho que, nos meus livros, se nota muito esse lado das
mulheres sofridas, das que são presas dos seus mais amados predadores.
Não sei se alguém, na Ordem dos Advogados, terá tido algum eco de um dos
meus primeiros casos mas, de repente, mandavam-me os processos das
senhoras todas... Nunca defendi um homem em situação de divórcio. Claro
que tinha um lado assustador: eu tinha 24, 25 anos, e estava ali a
defender senhoras que, nalguns casos, podiam ser minhas mães. Isto
levava a que a minha capacidade de identificação fosse, por razões
etárias, diminuta: eu estava muito distante. Apetecia-me resolver as
coisas com a maior brevidade, eventualmente ao estalo, mas tinha de usar
a diplomacia jurídica, muito lenta e muito chata. Penso até que foi
quando percebi a existência real de uma burocracia que só empecilhava,
que comecei a concluir que talvez fosse mais produtivo ocupar o meu
lugar no mundo como escritor, e não como advogado.
Sentia-se uma espécie de confessor das mulheres que defendeu?
Muito...
Hoje, tenho a ideia de que devo ter ouvido muita treta, muita "banha da
cobra", mas, na altura, acreditava em tudo, porque era um bocado
apalermado... Depois, pude perceber que talvez as histórias não fossem
rigorosas, que alguns maridos não seriam tão terríveis como isso, mas
também percebo que, na defesa das suas causas, as pessoas se choram com
as armas que têm. A verdade é que todas elas choravam, muito e bem, e eu
achava aquilo convincente... Não sabia distanciar-me e sofria com elas.
Dava boleias, algumas vezes cheguei a pagar as custas - e não tinha
dinheiro, na época -, queria minimizar aquele terror em que achava que
aquelas mulheres viviam.
Essa predisposição para assumir as dores dos outros, essa entrega à ajuda, não se sente na sua escrita?
Acho
que sim. Talvez até em tudo o que eu faço. Mas aí eu sou um bocado
palerma, porque chego a ajudar os que não querem ser ajudados (risos).
Às vezes, até insisto em ser amigo de alguém que não quer ser meu
amigo... Tenho um amigo que me diz que, quando eu faço alguma coisa por
alguém, o mais natural é esse alguém agradecer-me acabando a jantar em
minha casa (risos). Se calhar, tenho mesmo de rever os meus métodos de
relação... Há um dado curioso: claro que eu tenho amigos que estão bem e
é isso que eu lhes desejo. Mas tenho muito mais tendência para me
aproximar de quem está a viver momentos trágicos, situações-limite...
Isso, às vezes, implica uma enorme frustração, quando percebo que não
consegui resolver nada.
O seu processo de "transferência" do Direito para a escrita foi rápido, foi linear?
Eu
sempre escrevi desalmadamente durante a adolescência. O mesmo aconteceu
no tempo da universidade e do estágio. Mas chegou o momento em que
percebi que não poderia ser advogado, aquilo era cansativo,
emocionalmente esgotante, e eu não me sentia suficientemente seguro para
cuidar dos problemas das pessoas. Falei com os meus pais e disse-lhes
que, embora me tivessem pago um curso milionário numa universidade
privada, eu não ia ser advogado. Foi muito duro, mas foi um alívio.
Entreguei-me ainda mais à escrita e, na altura, escrevia sobretudo
poesia. Publiquei o primeiro livro aos 24 anos, ainda era estudante.
Depois, dos meus 24 aos meus 30, eu esperei para ser contratado pela
Câmara Municipal de Vila do Conde para trabalhar no auditório municipal -
e isso nunca aconteceu. Nunca falei disto publicamente, mas hoje
apetece-me... Aos 30, criei, com o Jorge Reis-Sá, as Quasi Edições e
passei a trabalhar lá. Foi aí que a câmara me chamou, dizendo que ia ser
contratado na semana seguinte... Isto depois de seis anos posto de
molho, tendo recusado contactos da Câmara da Póvoa de Varzim e de outros
projetos culturais. Eu abdiquei de fazer a minha vida de outra forma.
Foi terrível! Eu cheguei a pensar que talvez não servisse para nada, que
não sabia fazer nada... Foi muito cruel e a única coisa que
verdadeiramente me suportou foi a escrita. Quando entrei na Quasi, a
editar livros de outras pessoas e a escrever com outra consequência, a
vida parece que encaixou.
Que função era suposto desempenhar no auditório municipal?
Supostamente,
eu seria o diretor... Caber-me-ia fazer as honras da casa, mas também
tomar conta da programação, que era quase inexistente. Era um desafio
que ia da estruturação à comunicação. Vi todos à minha volta a serem
contratados e eu ia ficando à espera... Marcou-me muito essa rejeição,
essa espera sem qualquer tipo de respeito. Mas foi muito bom para a
poesia, porque foi uma fase de maturação, de leituras... Deixei de ser o
miúdo encantado para ser o adulto que queria. Acho que encontrei a
minha redenção na literatura.
Começando pela poesia e aí "morando" alguns anos...
Sim. Eu só publico o meu primeiro romance em 2004. Antes, foi só poesia, durante oito anos...
Como é que se sentiu na pele de editor?
Foi
maravilhoso. Adorava voltar a editar, dirigir uma pequena coleção de
poesia, por exemplo. Acho que quem passa pela descoberta dos textos e
dos autores, nunca perde o gosto e o desejo por essa tarefa. Essa
maravilha de podermos ser quase coautores de um livro, de o
ratificarmos, é algo de glorioso. Houve uma fase em que eu conhecia
tudo, todos os pequenos livros, todas as estéticas. Nós editámos muita
gente nova, alguns com escritas quase alienígenas e que não prestavam
vassalagem a nada nem a ninguém no universo português, mas também
publicámos o António Ramos Rosa, a Fiama Hasse Pais Brandão. E o José
Régio. Nunca me interessou criar capelas, nem por amiguismos profundos,
mas sim a mistura. Nunca editei à minha imagem e semelhança, até por
considerar isso um pouco obsceno...
Isso pressupõe, enquanto autor, que percebe bem o papel dos seus editores?
Perceber,
percebo, mas já tive problemas. A partir do momento em que se começa a
vender livros, por mais amigo e simpático que se seja, entra em campo o
interesse. Aí, acontece os editores terem de responder a ordens de
departamentos que nem sequer me conhecem... Já tive mais dissabores do
que esperava. É quase sempre porque se vende livros; se não vendesse,
ignoravam-me. Comigo, até na hora de recuperar os meus títulos, voltando
a publicá-los por uma outra editora, recebi e-mails mais ou menos
ameaçadores, e de gente com quem me dava bem...
Um escritor com o seu nível de vendas e de reconhecimento, premiado, vive bem, em Portugal, ou sobrevive apenas?
A
minha situação é, porventura, muito especial - se tivesse filhos, teria
muito mais dificuldades. Mas tenho de gerir o meu dinheiro em função
das necessidades de um adulto. Logo, se tiver de abdicar de determinadas
palermices, faço-o facilmente. Eu não me posso queixar: o sucesso que
tenho em Portugal e no Brasil, o facto de estar editado em muitos
países, faz que eu hoje esteja bem. Isto significa o quê? Ter um
apartamento há 14 anos e ter um carro que comprei usado. Mas não tenho
prestações para pagar nem empréstimos... Para o comum dos cidadãos que
vive bem, isso é pouco, porque têm casas com piscina, casas de campo,
casas de praia, eventualmente um barquinho para passear aos domingos,
dois filhos a estudar em colégios privados... Eu talvez não tenha a casa
que queria, mas tenho aquela que posso. Na minha vida, fui sempre muito
pragmático, nunca me abeirei daquilo que está acima do que posso ter.
Isto permite-me também manter a minha cabeça tranquila. Lembro-me,
quando comprei o apartamento da insistência do banco para que eu
contraísse um empréstimo. E eu não aceitei... Não quero nunca abdicar da
tranquilidade, que é exatamente aquilo que me permite pensar nos
livros. Se eu estiver acossado com a prestação da casa, provavelmente
não consigo escrever...
Não gosta de se sentir devedor...
Não
acho que seja esse o sentido das coisas. Sobretudo para um indivíduo
como eu, que não tem uma garantia. Não sou funcionário de nada, posso
estar hoje como um autor celebrado e amanhã ver as pessoas decidirem que
não me querem ler... Procuro ter a minha vida sempre dimensionada para a
hipótese de poder falhar. Acontece a quase todos. Porque não há de
acontecer comigo?
Já publicou poesia, romance, contos, literatura infantil... Hoje, a chegada de um novo livro tornou-se um hábito?
Não
é hábito nenhum! É muito diferente, face ao primeiro livro, mas a
tentativa acaba por ser sempre a de regressar aquela virgindade inicial
em que as coisas são descobertas por maravilha, como se estivéssemos
mesmo na pura dimensão da revelação. Só que nem tudo pode ser uma
revelação na cabeça de um indivíduo de 44 anos - sabemos mais,
experimentámos mais... Há pouco que nos pareça original e isso levanta
uma angústia de base. E há um paradoxo: é cada vez mais difícil eu ficar
satisfeito com um texto que escreva, mas sei que escrevo agora muito
melhor... Os meus livros mais recentes são muito melhores do que os
primeiros, disso não tenho dúvidas... Mas, por cada revelação que
alcanço, há duas ou três que me escapam... O indivíduo que vai sabendo,
sabe sobretudo melhor o tamanho da sua ignorância. Vou-me apaziguando,
às vezes até com as revelações de outros escritores, que me permitem
passar à dimensão gloriosa de leitor. Há muitos escritores que se vão
demitindo de ser leitores, mas eu não...
É um escritor que precisa de pessoas, de viagens, de contactos, mais do que um escritor eremita?
Eu
gosto de pessoas... Enquanto escritor, faz-me mais jeito estar quieto
do que viajar. Mas, depois, enquanto cidadão, assumo a pulsão para estar
com os outros e conversar... Claro que, se estivesse enfiado em casa,
escreveria muito mais.
Mais sim, mas melhor?
Pois,
aí é que eu não sei... Mas escreveria mais, leria mais... E talvez me
frustrasse menos com as pessoas. Só que basta desafiarem-me, chamarem-me
para alguma coisa, e eu vou - festinhas, jantares, tomar uns copos,
passear... Se for para apresentar livros e ver fontanários, aí é mais
difícil...
Não gosta da vida dos festivais literários?
Participei
em vários... Mas este ano, por exemplo, só fui às Correntes d"Escritas
[na Póvoa de Vazim]. Acho que chega a um ponto em que precisamos de
criar uma certa distância - as pessoas vão perguntar-nos as mesmas
coisas e, muitas das vezes, se não estivermos com uma moderação ou com
uma companhia interessante, acaba por ser dececionante. Há gente que me
trata por Vítor Hugo, que pensa que ainda escrevo só em minúsculas, que
me pergunta se eu não penso um dia escrever poesia, enfim... às vezes
estamos ali numa exposição que acaba por ser fútil, porque não há
aprofundamento de nada. Depois, exerce-se muito o politicamente correto,
de que já falámos, uma espécie de "marcopaulismo" em que basta estar
com o público e se entra numa mediania de discurso em que ninguém quer
dizer o que pensa sobre o impeachment da Dilma ou sobre o Cavaco
Silva... Ora, eu acho que se um escritor não usa a voz para dizer alguma
coisa de jeito, se fica ali apenas para adocicar o chazinho, mais vale
não participar...
Nesse âmbito, e além de uma voz própria, também se sente porta-voz de alguma coisa?
Não,
sou sempre eu. Mas sou eu por inteiro. Que eu saiba, fui o único
escritor que assinou uma petição para se exigir que a escola pública
fosse defendida em detrimento dos colégios privados... Eu até estudei
numa universidade privada, a que os meus pais tiveram de pagar. Mas
penso que não se pode duplicar o gasto: se temos uma escola pública a
prestar serviço numa determinada localidade, não faz sentido a dobragem.
Temos é de desafogar e melhorar o ensino público. Talvez eu tenha sido o
único escritor a assinar esse documento por haver consciência de que
são os colégios privados que compram livros... Se formos fazer uma
sessão a uma escola pública, os miúdos não têm um tostão para comprar o
livro; nos colégios privados é diferente porque os miúdos vêm de
famílias mais abastecidas e os pais agarram nos 15 euros e mandam
comprar, pedindo um autógrafo... Para mim, isto é evidente - e, se tiver
de ficar sozinho a defender esta ideia, não há problema.
Em 2007, ganhou o Prémio Saramago. Que importância real é que um prémio, ou melhor, que esse prémio teve na sua vida?
Começo
por dizer, desde já, o seguinte: o Prémio Saramago é o único que traz
mesmo uma mudança à vida de um escritor. Antes de mais, era dado pelo
próprio Saramago - de resto, não sei se ele terá a mesma força com o
Saramago morto. Depois, porque apanha os autores numa idade ainda jovem,
quando ainda são figuras sem capela. Ou seja, entende-se bem que o que
está em causa é a qualidade do livro, porque os escritores não têm
esquemas montados, ainda não são propriamente amigos de ninguém. É a
melhor distinção quando se quer dar um salto de uma atividade mais ou
menos amadora para um estado mais profissional, até na relação com uma
editora mais sustentada. Depois, há a dimensão do exemplo de José
Saramago, que nunca se calou e só esteve ao serviço da sua própria
consciência. O que mais me comoveu na distinção que ele quis fazer-me,
prende-se com o facto de ele não ser uma pessoa de elogio fácil, e que
só expunha as ideias em que efetivamente acreditava.
É possível olhar para si como uma versão atualizada do homem do Renascimento? O Valter desenha, canta...
Desenho
mal, canto mal... Mas vamos lá: desenhar é algo que me liberta o
pensamento, enquanto procuro uma cor ou uma linha. A cabeça pode entrar
noutro lugar e fornecer-me, desde logo, soluções para a literatura.
Quanto à música, tenho a ideia de querer ser músico, quando era miúdo...
Em ambos os casos, permito-me pensar que nos policiamos demasiado em
relação ao que fazemos. E talvez eu tenha passado de tímido para
trapalhão - prefiro fazer, mesmo que seja de uma forma tosca. Não o faço
exatamente a brincar, faço como posso e porque, habitualmente, sou
convidado para fazer. O que agradeço...
No caso do canto, esse chegar à frente não foi útil para adoçar a timidez?
Sim.
Com o grupo [Governo], fiz vários concertos. Houve um, no festival de
Paredes de Coura, em que ia morrendo de ataque cardíaco (risos)... O
concerto foi realizado no palco Jazz na Relva, obviamente menor do que o
principal mas, ainda assim, frequentado por milhares de pessoas, muitas
delas parte integrante da pior das clientelas, a da tarde, deitados ao
sol e sem pachorra para os carecas que vão ali mostrar música
desconhecida... Pensei que ia morrer ali, no palco de um festival de
verão, mas até achei adequado... Mas sobrevivi e até houve quem me
viesse dizer que correu bem. Claro que não deixei de ser eu, mas na
minha cabeça, e só na minha cabeça, eu estava perto de uma Billie
Holiday, de um Chet Baker, de um Johnny Hartman (risos)...
Quando
olhamos para vidas passadas, de escritores, pintores, pensadores, há
uma tendência para os arrumarmos por grupos de amigos ou rivais. Nos
nossos dias, isso ainda acontece ou os criadores ficam mais nas
respetivas casas, com os seus computadores?
Voltamos
a algo de que já falámos, à idade da cosmética, e ao desejo de se
evitar confrontos. As conversas extrapolam: qualquer coisa que digamos
pode transformar-se numa mensagem absolutamente ofensiva para a nossa
intenção. A tentação de polemizar anda bastante refreada, para evitar,
sei lá, que algo caia no Facebook e, de repente, apareça carregado de um
ódio que não existia na origem... O confronto é hoje muito desonesto.
Ainda assim, penso que, com o tempo, se vão sentir algumas aproximações,
algumas comunhões. No universo da poesia, é muito claro que em Portugal
há assim dois grupos, três grupos, bem identificado, seja pelas
chancelas que os editam, seja até pelo tráfico de dedicatórias que fazem
entre si e que espelham laços afetivos. Já a ficção acontece num teatro
muito largo: há menos rejeições, mas talvez haja menos necessidade de
companhia.
Hoje, agora, seria possível o Orpheu?
Há
muita gente a tentar algo de semelhante: de três em três meses, há um
número zero de uma revista que quer romper, quer mudar... Mas não, penso
que não seria possível por um motivo muito claro: o mundo, estando
estranho, mostra-se indisponível para uma mudança de paradigma. Não é
possível vislumbrar neste momento a criação de um novo homem e o Orpheu
está na esteira de um pensamento que, de alguma forma, propõe um novo
modo de ser. Isso hoje já não está em causa: vivemos de uma forma
acelerada, mas não necessariamente diferente, opositora. Ainda somos
sensivelmente o mesmo tipo de consciência. Talvez só as pulsões mais
terríveis possam denunciar uma assustadora nova humanidade, algo que
pode vir, por exemplo, d"O Psicopata Americano, do Brett Easton Ellis,
mas que anda paredes-meias com o racismo, com a xenofobia... Este novo
homem que é despudoradamente odioso e grotesco, maligno, talvez seja
aquilo que verdadeiramente poderá propor uma mudança de paradigma. Mas,
se o paradigma for esse, então já não estamos a falar da humanidade mas
de outra coisa qualquer.
copiado http://www.dn.pt/
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